Autoras do livro

Para facilitar a transmissão das descobertas culinárias de geração em geração, surgiram os livros de receitas, a partir do advento da escrita. Um livro de cozinha traz uma coleção de receitas, com os ingredientes, o modo de preparo, truques, sugestões e até formas de servir. Com o passar dos anos, assim como a cozinha, esses livros evoluíram – é o que mostra uma pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Lavras. O estudo de mestrado, realizado por Juliana Rocha Penoni, teve a orientação da professora Mariana Mirelle Pereira Natividade, da Faculdade de Ciências da Saúde, e coorientação da professora Nathália de Fátima Joaquim, da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas.

A ideia de associar nutrição e história para identificar as transformações dos hábitos alimentares surgiu de uma curiosidade familiar da Juliana, que teve acesso a livros de receitas antigos. “Sempre quis saber mais sobre como começamos a fazer as receitas, mas para mim foi algo desafiador, por conta da metodologia que utilizamos na pesquisa, já que, na Nutrição, somos bastante focados em metodologias quantitativas, mas aqui optamos por fazer um trabalho qualitativo. Além disso, foram muitas receitas com as quais trabalhamos”, explica. 

A professora Mariana ressalta que uma das intenções do estudo foi demonstrar que o ato de comer extrapola as razões meramente fisiológicas. “A alimentação é também influenciada pelo contexto social, econômico, político e cultural no qual o indivíduo está inserido e isso foi refletido nos livros de receitas estudados”.

A pesquisa avaliou mais de 5 mil receitas, de sete obras da culinária brasileira que, juntas, perpassam um período de aproximadamente duzentos anos.  Foram selecionados os livros: O Cozinheiro Imperial, de 1843; O Cozinheiro Nacional, possivelmente publicado entre 1860 e 1890; Comer Bem — Dona Benta, edição de 1944; A Cozinha Brasileira, de 1971; A Grande Cozinha de Ofélia, de 1979; A Cozinha Brasileira de Ana Maria Braga, lançado em 1998; e o livro Panelinha — Receitas que funcionam, de 2012.

Por meio dos livros, foram analisados os modos de preparo das receitas, os utensílios,  equipamentos e ingredientes utilizados, e como eram feitas as medidas. “As obras foram escolhidas por serem todas brasileiras e de maior circulação nacional de cada época, o que possibilitou uma reconstrução histórica da forma como as receitas eram escritas e possivelmente executadas”, diz Juliana. Livros_usados_na_pesquisa_900.jpg

A professora Nathália explica que, a partir dessa análise, foi possível perceber que os hábitos alimentares são construídos e reconstruídos ao longo do tempo e as receitas, então, são formas de eternizar aquilo que se consome/consumiu no seu tempo. Desse modo, os livros de receitas são fontes históricas muito importantes para que se possa compreender como os hábitos alimentares se reconstroem em uma sociedade.

Entradas, saladas, drinks, pratos principais, sobremesas, tudo isso, e muito mais, é encontrado nos livros de receita, que ficaram cada vez mais acessíveis com a popularização do uso da internet. Atualmente, mesmo sem muita experiência, é possível  cozinhar pratos e surpreender o paladar. Conforme comenta Juliana, “o livro de receitas funciona como um roteiro para aquele que pretende se aventurar pelo mundo da cozinha. Ao replicar uma receita, e obter um resultado positivo, o leitor (cozinheiro) passa a incorporar tal preparação no seu cotidiano, adotando a receita no seu dia a dia”.

Hábitos alimentares x alimentos industrializados

Pelos livros, foi possível avaliar o consumo de produtos industrializados, sejam eles processados ou ultraprocessados. Mesmo eles não sendo os ingredientes predominantes nas receitas, sua presença é um indicador de transformações dos hábitos alimentares. “À medida que os anos foram passando, percebemos a inserção dos alimentos altamente industrializados nas receitas. A produção desses alimentos foi ampliada no contexto da 2ª Guerra Mundial para alimentar os soldados. Com o fim da batalha, a produção desses alimentos foi direcionada à população”, comenta a professora Mariana.

“A partir do livro da Ofélia, publicado em 1944, notamos  um aumento da utilização de alimentos processados e ultraprocessados.  Mas, nas obras seguintes,  como nos livros da Ana Maria Braga e da Rita Lobo, houve uma redução da utilização desses alimentos. Na obra da Ana Maria, privilegiam-se receitas regionais, que valorizam os alimentos tradicionais brasileiros. E na de Rita Lobo, fomenta-se esse movimento de cozinhar do "zero", dando preferência a alimentos com baixo grau de processamento”, explica Mariana.

Segundo a pesquisadora, ocorreu uma diminuição e homogeneização dos ingredientes  das receitas. “Com a Revolução Industrial e a industrialização da alimentação, ocorreu também um êxodo rural. Assim, algumas hortaliças deixaram de ser cultivadas. A expansão das monoculturas e a redução da agricultura familiar são fatores que contribuem também para a redução da oferta de alimentos diferentes. Atualmente, quase todos os produtos industrializados que consumimos vêm do milho e do trigo, apesar da falsa sensação de variabilidade de alimentos que temos”. 

O papel culinário da mulher 

Em geral, o ato de cozinhar é uma tarefa delegada às mulheres, embora o  primeiro livro avaliado fosse mais direcionado ao cozinheiro profissional. A transformação do papel culinário da mulher é evidenciada nas obras, como aponta a professora Nathália. “Esse é um ponto sensível desta pesquisa. Vimos que o papel de cozinhar direcionado às mulheres perpetuou-se na maior parte das obras. Apenas no livro publicado mais recentemente, “Panelinha: receitas que funcionam”, essa percepção da responsabilidade feminina pela alimentação é substituída pelo incentivo à participação de toda a família no processo de cozinhar”.

A professora lembra, também, a questão racial muito forte nas obras, com autoras brancas ensinando a cozinhar. “Observamos que, apesar de todas as mudanças que vêm ocorrendo na sociedade, a transmissão e perpetuação do saber culinário, em grande parte, ainda é feita por mulheres brancas e de classe média”. 

Outro ponto importante é que atualmente começam a surgir ações de valorização de receitas de origem africana e do trabalho de cozinheiras, cozinheiros e chefs negras e negros. “Nossa expectativa é de que essas ações se tornem um marco histórico e sejam perpetuados em livros de receitas de ampla circulação, como as obras analisadas na pesquisa”, pontua as pesquisadoras.

Da pesquisa de mestrado, surgiu o livro digital “Em livros de receitas se (re)conhecem os hábitos alimentares”, publicado pela Editora UFLA, em dezembro de 2020. A obra tem o intuito de auxiliar futuras pesquisas sobre o assunto. “Desde o início da pesquisa, observamos que a dissertação da Juliana tinha potencial para se tornar um livro, pela maneira como foi escrita. Assim, esperamos que esse livro endosse a superação da perspectiva da alimentação como ato predominantemente fisiológico e amplie a visão do ato de comer e cozinhar como ações que são também frutos de um contexto social, cultural e econômico”,  comenta a professora Nathália.

O livro digital está disponível gratuitamente no site do Repositório UFLA.