Calor, sol e sorvete. Comuns durante o verão, os sorvetes trazem certo alívio para os brasileiros nos dias de mormaço. Uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Alimentos da Universidade Federal de Lavras (PPGCA/UFLA) aproveitou os resíduos resultantes do processo de filetagem do salmão e da tilápia, espécies apreciadas pelos consumidores, para produzir óleos de peixe que podem ser aplicados na fabricação de sorvetes, substituindo a gordura normalmente utilizada, que é o creme de leite.

Os resíduos, que são a cabeça e a carcaça dos peixes, foram coletados em peixarias e restaurantes de comida japonesa de Lavras. De acordo com a pesquisadora responsável pelo estudo, Ana Luiza de Souza Miranda, os óleos produzidos com os resíduos se mostraram uma boa alternativa. “Todos os sorvetes produzidos apresentaram boa qualidade, sem riscos à saúde do consumidor, o que ressalta a qualidade dos ingredientes que utilizamos e, principalmente, dos óleos que produzimos durante a pesquisa.”

Ana ainda revela que produzir óleos de peixe a partir desses resíduos contribui para solucionar o problema ambiental que pode ser causado pelo descarte incorreto, além de diminuir o desperdício de alimentos. “As indústrias do setor pesqueiro geram uma grande quantidade de resíduos, e o descarte desses materiais de uma forma correta, que reduz o impacto ambiental, é um desafio. Por isso, é importante transformar esses resíduos em produtos de consumo, só que, muitas vezes, as indústrias e restaurantes não sabem como. Criar estratégias sustentáveis para utilizar esses resíduos pesqueiros na alimentação humana é de grande utilidade. Afinal, adicionar ingredientes derivados de peixes, como os nossos óleos, em um produto apreciado, como o sorvete, contribui também para o aumento do consumo de peixe, tornando-se uma alternativa com benefícios nutricionais para aqueles que não gostam de consumir peixe. Além disso, esse processo auxilia no não desperdício de alimentos e na diminuição da poluição ambiental”, explica.

As etapas

Após a coleta dos resíduos, eles foram transportados para o Planta Piloto de Processamento de Pescado, laboratório da UFLA onde foram limpos com água tratada e moídos em um moedor elétrico de carne, gerando uma massa. Nessa massa, os pesquisadores adicionaram uma substância chamada de BHT, um antioxidante que previne alterações no cheiro, na cor e no sabor de produtos ricos em óleos e gorduras. As amostras foram empacotadas em sacos plásticos e armazenadas em freezer até o momento da produção do óleo.

A extração dos óleos de tilápia e salmão foi realizada por meio do cozimento (a 60 graus durante 60 minutos) e da centrifugação. Os óleos gerados foram armazenados em vidros, sob refrigeração, e, posteriormente, passaram pelo processo de refino, que removeu misturas indesejáveis que iriam afetar a qualidade, a estabilidade e a aceitabilidade do óleo. Em seguida, eles foram caracterizados e analisados, o que auxiliou nos cálculos necessários para produzir os sorvetes mais precisamente.

Os óleos de tilápia e salmão foram aplicados em sorvetes como substitutos da gordura e foram avaliados os impactos dessa substituição nas características dos sorvetes. Foram produzidas amostras contendo diferentes quantidades de óleos e de outros ingredientes.

As misturas dos sorvetes foram preparadas com açúcar, estabilizante liga neutra (que favorece a cremosidade, o “corpo” e a textura do sorvete), emulsificante (que garante maior maciez e um derretimento mais lento), leite em pó desnatado, óleo de peixe e água. Os ingredientes e quantidades utilizados foram calculados por meio do software Cálculos para Padronização de Sorvete (CPS). Os pesquisadores também prepararam uma amostra normal, sem os óleos, usando creme de leite.

Os sorvetes foram preparados utilizando a sorveteira do Laboratório de Laticínios da UFLA e, ao final, todos foram testados.

Os resultados

As características químicas dos sorvetes mostraram as semelhanças das amostras e confirmaram a possibilidade do uso dos óleos de tilápia e salmão na produção de sorvetes. Além disso, todos os sorvetes preparados com óleo de salmão possuem uma alta quantidade de ômega-3, uma “gordura saudável”.

Já as características físico-químicas evidenciaram que a substituição do creme de leite por óleo de tilápia ou salmão resulta em uma menor acidez dos produtos, por substituir um produto lácteo que possui a sua própria acidez característica. Não existem recomendações específicas de um valor de acidez que os sorvetes devem possuir, mas muita acidez causaria um sabor ácido exagerado. Por isso, uma menor acidez não é algo ruim. “Podemos dizer que a menor acidez dos nossos sorvetes não interfere no sabor do produto, o que teria sido um grande problema. Mesmo sendo menos ácidos, isso não afetou a qualidade microbiológica dos sorvetes, pois observamos, nas análises, que todos possuem conformidade para o consumo e são seguros. Essa nossa troca da fonte de gordura nos sorvetes, na verdade, proporciona uma acidez até mesmo próxima do que já é encontrado nos sorvetes em geral”, revela Ana.

Os aspectos físicos e tecnológicos dos sorvetes, por sua vez, mostraram que o derretimento não foi afetado pelos diferentes óleos adicionados, mas as primeiras gotas dos sorvetes contendo óleo de salmão derreteram mais rápido, o que não é desejável. Nas amostras produzidas, quando comparadas aos sorvetes comercializados, também foi observada uma menor quantidade de ar incorporado aos sorvetes. O ar nos sorvetes auxilia no rendimento, na textura, no derretimento e na “dureza” do produto. Quanto menor a quantidade de ar, menor é o rendimento, mais duro é o sorvete e menor é a resistência ao derretimento. Por isso, os sorvetes criados com os óleos são mais semelhantes aos sherbets, que são mais leves que os sorvetes. Já em relação à cor, usar os óleos em maiores quantidades nos sorvetes levou à menor luminosidade, à coloração esverdeada (quando usado óleo de tilápia) e à coloração avermelhada (quando usado óleo de salmão). Porém, Ana afirma que essas alterações não são visíveis a olho nu.

Algumas dessas características observadas podem interferir na aceitação sensorial dos produtos. Novos trabalhos já estão sendo desenvolvidos para realizar análises na microestrutura desses sorvetes e a análise sensorial. Atualmente, a equipe está coletando os resíduos novamente e reproduzindo os óleos para que seja possível refazer os sorvetes para a realização dessas análises.

A equipe

A pesquisa “Aproveitamento de resíduos da filetagem de tilápia e salmão para produção de óleo de peixe com aplicação em sorvetes” está ligada à dissertação de mestrado de Ana, que agora é doutoranda no PPGCA. Defendida em 2022, a pesquisa foi orientada por Carlos José Pimenta e coorientada por Maria Emília de Sousa Gomes, ambos professores da Escola de Ciências Agrárias de Lavras (Esal/UFLA).

Também estão envolvidos no estudo outros membros da Esal: o pós-doutorando Dieyckson Osvani Freire; os pós-graduandos Anderson Henrique Venâncio, Louise Paiva Passos e Francielly Côrrea Albergaria; a graduanda Luísa dos Santos Araújo; e os docentes Ana Carla Marques Pinheiro e Cleiton Antônio Nunes.

 

Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.