O esporte como ferramenta de blindagem social 

“Transformar aquilo que era impossível em realidade”. Foi dessa forma que Chrystian Júnior Adriano de Paula, estudante de Educação Física da UFLA, definiu para si o Centro Regional de Iniciação ao Atletismo (Cria-UFLA). Ele, que participa das atividades oferecidas desde os 13 anos, conheceu o projeto por meio de um primo e destaca que, ao ingressar nele, criou outras perspectivas em relação ao seu futuro.

“Diante das minhas atitudes em casa e na escola, eu não considerava a universidade um ambiente que poderia vir a frequentar e, principalmente, estudar. Eu era muito indisciplinado e, hoje, quando me vejo preparando o treinamento de atletismo para as crianças, percebo o crescimento e o amadurecimento que me foram proporcionados. Acredito cada vez mais que a educação tem um poder transformador e que o Cria-UFLA nunca será só atletismo ou só mais uma modalidade esportiva, pois ele tem importância significativa na formação de cada participante e na realização de cada sonho”, destaca Chrystian.

Relatos como esse despertam o interesse de pesquisadores, como do estudante de Educação Física Tiago Marques Guimarães, que analisa como o projeto tem impactado a vida dos participantes. A pesquisa, ainda em andamento, utiliza como instrumentos de coleta de dados entrevistas, conversas em grupos e a própria vivência com participantes. 

“O intuito é relatar como a iniciação e a permanência do indivíduo em um projeto sócio-esportivo como o Cria-UFLA interfere de maneira significativa no desenvolvimento sociocultural dos jovens e crianças da cidade de Lavras e outras localidades. Logo no início da pesquisa, percebemos que o projeto promove vitórias para a sociedade e para as pessoas, sejam elas vitórias que dizem res­pei­to ao me­lhor condi­cio­na­men­to fí­si­co, se­jam vi­tó­rias relacionadas à melhora da autoestima e, principalmente, vitórias humanas”, relata o pesquisador.Premiacao Cria

O Cria-UFLA não tem o objetivo de selecionar apenas crianças com aptidão esportiva. É permitida a inserção de todos que queiram participar; não existe uma seleção de quem integrará o projeto, pois o objetivo não é escolher talentos esportivos, mas dar oportunidades e propiciar aos participantes talentos para a vida. Há crianças com limitações físicas, cognitivas, e não há nenhuma convenção que estabeleça que os participantes sejam apenas de escolas públicas, embora o maior número de integrantes seja das escolas municipais e estaduais.

Dessa forma, a pesquisa de Tiago aponta que há diversidade nas propostas abordadas. Há o esporte de rendimento, que acompanha alguns jovens atletas de alto nível que frequentemente participam de competições nacionais e internacionais. O esporte escolar é uma ferramenta de ampliação dos conhecimentos da área da Educação Física, por meio da qual os participantes do Cria-UFLA levam práticas do atletismo para as escolas públicas, despertando interesse nos estudantes tanto das áreas das ciências da natureza quanto das áreas antropológicas. Há também o esporte de iniciação, no qual crianças passam pelos processos iniciais de aquisição de técnicas, cultura e sociabilidade, interagindo não apenas com o atletismo, mas também com dança, capoeira, entre outras atividades.

A diversidade do Cria-UFLA

No esporte de rendimento, o Cria-UFLA tem se destacado em inúmeras competições nacionais e internacionais. Há vários campeões mineiros e brasileiros, atletas que foram medalhistas em campeonatos sul-americanos. O professor Fernando Roberto de Oliveira, coordenador do Cria-UFLA e orientador da pesquisa, ressalta a participação dos atletas no Pan-americano de atletismo Juvenil; Gymnasiades – Brasil (2013); Mundial de Atletismo Escolar (Rep. Tcheca) nos Jogos Olímpicos da Juventude, organizados na Argentina (2018); o campeonato Sul-Americano Sub-20 de atletismo, realizado na Colômbia em junho deste ano.

Nas competições da ArgentinCria participantesa e da Colômbia, o Cria-UFLA foi representado pela atleta Elton Junio dos Santos Petronilho. Na Argentina, ele conquistou o 5º lugar e, na Colômbia, garantiu a medalha de ouro para o Brasil. O atleta é natural de Bom Sucesso/MG e hoje compete profissionalmente pelo Esporte Clube Pinheiros/SP. Elton descobriu no esporte a chance de superação após um acidente em sua infância que quase fez com que perdesse a perna direita. O adolescente conheceu o Cria-UFLA em sua cidade e “se encontrou” na modalidade de salto em altura. 

“Iniciei minha participação no Cria-UFLA com treinamento na minha cidade, em 2013. Desde então, minha participação tem sido uma superação. Sou grato pelo aprendizado que tive com meus colegas e treinadores. Eles foram essenciais para a formação da minha personalidade, pois quando comecei a obter bons resultados, acabei perdendo um pouco o foco, olhando em outras direções. Mas os treinadores sempre conversaram comigo, orientaram-me a ficar centrado. Dessa forma, poderei alcançar sonhos que eu não consigo imaginar”, relata o atleta.

O projeto destaca-se e proporciona a integração de participantes de Lavras, cidades vizinhas e de outras regiões do País, como é o caso de Mikaele Jeane da Silva Carneiro, que é de Timon, divisa entre o Maranhão e o Piauí. “O Cria proporcionou mudanças em minha autoestima, sendo possível esquecer os problemas e ainda me divertir”, explica a estudante. Em sua cidade natal, ela participava de handebol, mas está agradecida pelo ensinamento que tem com a nova modalidade.

Entre os integrantes do Cria-UFLA, também conhecemos Nemata Nikiema, de Burkina Faso/África. O professor Fernando a conheceu no Mundial Escolar em Marrakech/Marrocos. Ela tem 13 anos e dá continuidade aos estudos na cidade de Lavras. “Eu já participava do atletismo em minha cidade natal, mas estar aqui no Cria tem sido muito melhor. Estou muito feliz com os treinos que são oferecidos”, ressalta a estudante.

Além das crianças e adolescentes, há a integração de outros participantes no projeto. “Eu faço parte do Cria-UFLA há quase um ano. Praticava rúgbi na UFLA e, após participar de treinos com o pessoal do atletismo, tive uma afinidade maior com a modalidade e hoje tenho prazer em participar dos treinos. Também destaco a união e força que o grupo tem. Independentemente da situação, seja com presença do treinador ou não, há dedicação do grupo nas atividades propostas”, comenta o estudante de doutorado em Ciência do Solo Marcelo Henrique Procópio.

Em meio às variadas atividades, no Cria-UFLA ocorre a socialização entre os treinados, o que proporciona um aumento de vínculos sociais e aumento da efetividaEquipe desportivade, entretenimento para ocupação do tempo livre, além da aproximação entre a comunidade e a universidade. “Eu nunca havia trabalhado com crianças e o maior aprendizado é que nunca podemos nos esquecer de onde viemos. A universidade pública não pode se abster de satisfazer a necessidade desses grupos. Nós que viemos de um grupo de situação socioeconômica mais baixa, sofremos com preconceitos e dificuldades da vida. Depois que entramos para a universidade, tornamo-nos professores, não podemos deixar essa comunidade de lado. Esse País tem uma dívida muito grande com os mais pobres. Sejamos justos com todo mundo, ou pouco justos estaremos sendo”, destaca o professor Fernando.

O relato do orientador enfatiza outro aspecto observado pelo pesquisador: a aproximação das comunidades mais vulneráveis socialmente com a Universidade. O Cria recebe inúmeros participantes encontrados em situação de risco social e vulnerabilidade econômica e tem grande influência na redução dos fatores de risco, especialmente as violações de direito relacionadas à pobreza. Além disso, vários ex-atletas ingressaram e concluíram cursos da UFLA, sobretudo os cursos de licenciatura e bacharelado em Educação Física.

“Este é um projeto educacional cujo esporte é o meio. Caso a criança tenha apenas a prática do esporte, talvez ela não alcance os seus objetivos, mas quando inserimos a educação dentro desse conceito, a perspectiva é outra. É preciso permitir que as crianças que são de situação socioeconômica de risco tenham acesso à universidade, para que este seja o mundo onde elas queiram estar”, destaca o professor Fernando.

A pesquisa realizada indica que “a mobilidade social através do treinamento esportivo fica explícita ao constatar quantos integrantes do projeto são os primeiros de suas famílias a ingressar em um curso superior profissionalizante, o que remete à democratização de oportunidades, outrora apenas conferidas a pessoas que possuíam melhores condições econômicas”. O Cria-UFLA tem alcançado resultados surpreendentes, utilizando o esporte como ferramenta de blindagem social.

Reportagem: Greicielle dos Santos - bolsista Dcom/Fapemig

Edição do vídeo: Sérgio Augusto - Editor/Dcom

Imagens: Luiz Felipe Souza - Editor/Dcom e Sérgio Augusto - Editor/Dcom