No Brasil, a responsabilidade pelo cuidado com os filhos recai majoritariamente sobre os ombros da mãe. E essa divisão desigual sobre o que a mulher pode e deve fazer é um dos entraves para o desenvolvimento de sua carreira, inclusive na docência e na ciência. Para ajudar a combater esse desequilíbrio, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) disponibiliza, a partir desta quinta-feira (15/4), um campo específico no Currículo Lattes para pesquisadoras mães indicarem o período no qual usufruíram da licença-maternidade ou adotante. A decisão atende a uma reivindicação do Movimento Parent in Science, que possui duas embaixadoras da UFLA.

A mudança no Lattes é considerada pelo movimento um importante passo para editais acadêmicos avaliarem esse período da vida de pesquisadoras mães sem penalizá-las. Editais inovadores de universidades brasileiras já apontam nessa direção, ao pontuar quem entrou em licença paternal ou assumiu função de maternidade. Esse é o caso do edital do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) de 2019 da Universidade Federal Fluminense (UFF), analisado cientificamente por pesquisadoras da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Lavras (FCSA/UFLA).

No edital da UFF, docentes que estiveram em licença-maternidade nos dois anos anteriores tiveram direito a um bônus de cinco pontos na avaliação do currículo, como forma de compensar o direito das mães em função de seu afastamento legal. Pais que adotaram menores, incluindo casais homoafetivos, também foram contemplados. Para entender os critérios de igualdade da iniciativa, as professoras do Departamento de Direito da UFLA Letícia Dyniewicz e Raphaela Rocha pesquisaram o edital da UFF.

Letícia explica que a medida visava reconhecer o direito das professoras em função do afastamento legal das funções de pesquisa na universidade por motivo, principalmente, da licença-maternidade. “A decisão foi implementada depois de uma consulta a professoras que se sentiram prejudicadas em editais anteriores, porque tiveram a carreira suspensa por um período e não puderam concorrer em condições de igualdade com os pesquisadores homens”, conta Letícia. Normalmente, professoras têm filhos dois anos após ingressarem na universidade, com uma média de 33 anos, e, após o nascimento da criança, reduzem significativamente ou estagnam a produção acadêmica. Enquanto professores continuam em plena ascensão.

A pesquisa buscou compreender se o edital era de fato legal do ponto de vista jurídico. Para isso, revisou teorias que revelam como as desigualdades da divisão sexual do trabalho impactam as mulheres, que, por questões sociais e estruturais, assumem o cuidado da casa, a criação dos filhos e dos idosos, enquanto os homens normalmente não se encarregam da organização da casa e dos cuidados com a família.

Na revisão teórica, elas também investigaram se o critério de igualdade poderia ser aplicado nesse caso, a partir da visão da pesquisadora Sandra Fredman, que estuda questões relacionadas ao direito do trabalho, como obstáculos que surgem no mercado de trabalho em virtude de políticas discriminatórias.

A professora Raphaela diferencia a existência de dois tipos de igualdade. Uma delas é a igualdade na forma, ou seja, o que está prescrito em lei e trata todos os indivíduos por uma regra única. A outra é a igualdade material, noção contemporânea de que a igualdade no mundo real é mais complexa do que a igualdade formal. “A constituição federal garante o princípio igualitário como o tratamento igual entre sujeitos, não discriminatório, o que diz muito pouco sobre o que de fato é o princípio da igualdade. Nem sempre a existência de regras universais promove realmente a igualdade”, esclarece.

A pesquisadora Letícia complementa: “Não basta dizer que todos somos iguais perante a lei, sem levar em consideração as diferenças que uma mulher tem na carreira em relação ao homem, por exemplo. Por isso, é importante entender como operacionalizar um princípio de igualdade material que seja condizente com a realidade e possa ser aplicado”, frisa.

A proposta da estudiosa Sandra Fredman estabelece parâmetros de igualdade que levam em consideração essas diferenças. De acordo com ela, para existir igualdade, é preciso redistribuir ônus, reconhecer grupos discriminados de algum processo e o direito de participação das minorias nas manifestações de vontade e de acordo. “A política igualitária precisa reconhecer a diferença entre grupos e que uma regra universal é discriminatória porque discrepâncias são produzidas ao tratar igual todos os indivíduos. Também é necessário redistribuir o ônus, isto é, trabalhar um novo arranjo que possibilite minimizar o tratamento discriminatório anterior, com políticas variadas, como das ações afirmativas, por exemplo, as cotas”, explica.

Outro ponto importante é a voz dos grupos discriminados. “Não se trata de criar mecanismo para que essas pessoas participem dos editais. Mas criar mecanismos para as mulheres influenciarem regras que criam essas políticas ou regras que as afetem”, justifica.

Na análise, as professoras da UFLA concluíram que o edital da UFF é adequado para tratar de política de igualdade, segundo os parâmetros contemporâneos da estudiosa Sandra Fredman. “O edital promove igualdade material do ponto de vista daquele instrumento específico para oferta de bolsas de iniciação científica. Não significa que o edital seja um mecanismo que solucionará, dentro de toda uma universidade, as discriminações e discrepâncias que existem entre o trabalho dos professores e das professoras. Mas sinaliza a existência de uma preocupação da UFF de se sensibilizar por essas questões”, ressalta Raphaela. 

O edital também foi considerado uma medida assertiva por não contemplar apenas mães que tiveram bebês, como também por prever pontuação diferenciada para pais adotantes. “Compreende que a chegada do filho, seja biológico, seja por vínculo jurídico como a adoção, e independente da idade da criança, modifica o rearranjo e estrutura de uma casa”, afirma Letícia.