Você já ouviu falar no termo interseccionalidade? Uma pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras (UFLA), utilizou essa ferramenta analítica para investigar opressões e desigualdades enfrentadas pelas mulheres negras em carreiras das profissões produzidas como imperiais - Direito, Medicina e Engenharia.  O racismo foi um dos marcadores mais citados durante a pesquisa pelas entrevistadas, que narraram suas histórias sobre as trajetórias de carreira. Os resultados mostram que as opressões afetam o percurso dessas mulheres de forma conjunta. 

O trabalho buscou responder como marcadores de diferenças identitárias, tais como classe, raça e gênero, afetam o processo de construção das carreiras dessas mulheres. Segundo a pesquisadora, em um primeiro momento, o objetivo era analisar opressões de gênero, classe e raça, todavia, ao longo da pesquisa, surgiram outros marcadores, como a sexualidade e a regionalidade. 

As profissões de Direito, Medicina e Engenharia são conhecidas como “profissões imperiais” desde 1832, segundo o sociólogo brasileiro Edmundo Coelho, devido à importância e prestígio que têm na sociedade. Essas áreas de atuação têm em comum o fato de serem consideradas pilares fundamentais para o desenvolvimento de uma nação, visto que lidam com questões essenciais para a manutenção da ordem, do bem-estar e do progresso do país.

A interseccionalidade na pesquisa

A interseccionalidade é um termo criado pela jurista e professora Kimberlé Crenshaw, e correlaciona diversas opressões da sociedade. Existem vários marcadores identitários, como raça, classe, gênero, sexualidade, regionalidade, entre outros. Apoiada nessa proposta, a pesquisadora Louise Rodrigues Silva explica que a interseccionalidade é uma ferramenta teórica, metodológica e ativista, que propõe articular, em conjunto, os marcadores de diferenças identitárias sociais que produzem injustiças sociais.

Segundo Louise, a interseccionalidade mostra que existem na sociedade vários sistemas de opressão. “A pesquisa buscou reflexões sobre os fatores que geram consequências na ascensão social de mulheres negras, sobre o papel coletivo da sociedade e dos marcadores identitários nesse processo”, relata. 

É o que expressa o relato de uma das entrevistadas, que tiveram suas identidades preservadas como parte do procedimento de pesquisa. “No final das contas você sempre vai ser uma mulher negra que está numa posição de poder. Eu acho que o maior desafio que eu enfrento hoje é isso, porque as pessoas não aceitam que eu seja a médica. Eu conversava muito isso com alguns colegas. É muito mais fácil aceitar um homem negro médico, do que uma mulher negra médica. Então desde que comecei a trabalhar, estão sempre duvidando do meu lugar”, avalia a participante do estudo. “Em um dos meus primeiros plantões na vida, cheguei no hospital e a chefe da enfermagem deu um tapa no meu braço perguntando qual era o meu nome, porque ela tinha que anotar no nome das técnicas de enfermagem. Eu olhei pra ela e falei: eu sou a médica daqui hoje! Inclusive eu tinha ido lá pra me apresentar e tudo mais. É o tratamento que os outros profissionais me davam. Era muito ríspido, de certa forma”. 

Nesse relato, que compõe o estudo, a entrevistada menciona o quanto o fator etário se entrelaça à questão racial e de gênero, e aumenta as dificuldades. “Além de formar nova, eu tenho uma aparência mais jovem, eu tenho voz mais fininha, tudo isso contribui pra aquele estereotipozinho de uma menina incompetente que não sabe o que está fazendo. Ainda junta ser negra. Aí que não fecha mesmo. É de duvidar da conduta, de ignorar que você está lá, de tratar mal. Isso em todos os ambientes”, disse. 

Louise destaca que as mulheres negras enfrentam múltiplas formas de opressão e, por isso, é necessário analisar suas experiências de carreira considerando todas essas dimensões. “É importante reconhecer as pluralidades das mulheres negras, ou seja, suas diferentes vivências e contextos sociais”, explica.

A pesquisadora ressalta a importância de entender como o acesso às oportunidades influencia a trajetória profissional dessas mulheres e como elas conseguem mover as barreiras sociais impostas pela marginalização. As mulheres negras estão ocupando profissões consideradas como de prestígio social, o que mostra que elas estão movendo os estereótipos e preconceitos que as marginalizam no mercado de trabalho.

Espera-se que, por meio de estudos como esse, haja o fortalecimento das pesquisas capazes de pautar a questão das opressões e injustiças sociais, que afetam especialmente os grupos socialmente marginalizados, ultrapassando as barreiras de discussão sobre opressões e desigualdades, para auxiliar na transformação social.

A metodologia

Por meio de uma técnica intitulada “bola de neve”, pela qual um entrevistado indica uma nova pessoa para participar do estudo, e assim sucessivamente, Louise, sob orientação da professora da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FCSA) Flávia Luciana Naves Mafra, realizou entrevistas narrativas com mulheres negras formadas em Medicina, Direito e Engenharia, visando avaliar em profundidade aspectos específicos que emergem de suas histórias de vida. 

O artigo e a equipe

A dissertação Carreiras de mulheres negras em carreiras de mulheres negras em profissões produzidas como imperiais: uma análise interseccional foi publicada em abril de 2022, com orientação da professora Flávia Luciana Naves Mafra, da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FCSA). A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.