Por

Franciane Sousa Ladeira Aires

Apolliane Xavier Moreira dos Santos

Professoras do Grupo 3 do Núcleo de Educação da Infância (Nedi), integrantes da comissão coordenadora do curso de pós-graduação em Educação Infantil e do Observatório da Infância, Educação e Cultura da UFLA

 

As mulheres são maioria na categoria de docentes. Segundo dados do censo escolar[i] de 2020, o Brasil pode ser considerado um país de professoras – 81% no total geral da Educação. Na educação infantil, as mulheres ocupam 96,4% das vagas.

Nesse sentido, ao abordarmos a questão do feminino na docência, é importante refletirmos sobre algumas nomenclaturas que a sociedade tem atribuído às professoras, em especial àquelas que se dedicam à educação infantil.


As mulheres são tias ou professoras de bebês e crianças da educação infantil?

O substantivo “tia”, assim como todas as palavras que compõem a nossa língua, é carregado de sentidos, às vezes estigmas que podem maquiar o seu real sentido e significado.  Alessandra Arce (2001)[ii] , no texto “Documentação oficial e o mito da educadora nata na educação infantil”, afirma que, ao longo da história, a imagem da profissional da área da educação vem sendo reforçada como a da mulher naturalmente educadora, passiva, paciente, amorosa, que sabe agir com bom senso, que é guiada pelo coração, que tem espírito de doação. Entretanto, a profissionalização nessa perspectiva é deixada de lado e abre caminho para o amadorismo na atuação.

A pesquisadora pontua que palavras como “jeitinho” ou “gostar” reforçam que não há necessidade de formação para ser professora, configurando a feminização do magistério. A imagem da profissional da educação infantil tem sido relacionada ao mito da maternidade, da mulher dona do lar e da educadora nata. Desse modo, a utilização de termos como “professorinha” ou “tia” acaba por configurar uma caracterização mal definida da profissional, que confunde o papel doméstico da mulher/mãe com o trabalho de educar. Assim, essa mulher não chega a ser professora devido à proximidade extrema que seu trabalho possui com o doméstico e o privado e, por outro lado, não chega a ser mãe porque biologicamente não foi responsável por todas as crianças que ficam sob a sua responsabilidade educativa. Daí essa junção entre mãe e professora fica sintetizada na conhecida utilização do chamamento “tia”, o que contribui para a não profissionalização, resquícios de uma concepção assistencialista de educação infantil, que já deveria estar superada.

A autora Eliana Novaes (1992)[iii] considera que o fato de a professora ser mulher contribui, muitas vezes, para que se misture o saber técnico com o saber doméstico, confundindo a docência com a mãe ou a tia das crianças. Ela ressalta que esse costume surgiu por volta dos anos de 1950, quando crianças aprenderam a chamar as amigas dos pais de tias, por dificuldade de aprender o nome dessas pessoas. “Tratando-as por ‘tias’ o relacionamento das crianças seria facilitado. A partir daí, o hábito se estendeu às professoras das pré-escolas nos anos de 1960 e, mais tarde, nos anos de 1970, às professoras das escolas do antigo primário” (NOVAES, 1992, p. 127).

Outra hipótese parte da constatação de que, ao incorporar a função docente, a mulher estende suas atividades femininas além dos limites domésticos. Nessa perspectiva, a professora é considerada, portanto, como uma segunda mãe do estudante.

No Brasil, é frequente o uso do termo “tia” na educação infantil para se referir à profissional da educação. Essa terminologia tira da professora sua identidade, tanto de sujeito como de profissional. Além disso, o termo “tia” gera uma confusão quando é considerado como símbolo de afetividade.

Paulo Freire (1997)[iv], em sua obra “Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar”, traz reflexões acerca do papel da mulher na educação das crianças pequenas, que, por muito tempo, não considerou as competências inerentes ao magistério.

Ele fez questão de (re)afirmar que não desprezava o papel de tia na vida do estudante ou de outras pessoas, pois uma professora pode ter sobrinhos e uma tia pode ser professora. O intuito do autor era que todas as pessoas pudessem refletir e compreender que há diferenças entre tia e professora, e essas diferenças são cabíveis de identificação. Afinal, ensinar exige competências específicas à profissão e ser tia requer uma relação de parentesco.

Ser professora implica assumir uma profissão e ser tia não é profissão. Pode ser tia distante dos sobrinhos, mas não se pode ser uma professora distante, mesmo em um trabalho remoto, como vivenciamos nesse período pandêmico, “longe” dos estudantes. Se não há discentes, estudantes e crianças, não há docência.

Como aponta Paulo Freire (1997), recusar a nomenclatura “tia” para a professora evita uma compreensão distorcida da tarefa profissional da professora e desvela a sombra que repousa na intimidade da falsa identificação. Identificar professora com “tia” é quase como proclamar que professoras, como boas tias, não devem lutar pelos seus direitos, não devem reivindicar melhores condições para seu trabalho, para seus estudantes, não devem militar em prol de uma educação de qualidade. Toda professora tem o direito de querer ser chamada de tia, mas não pode desconhecer as implicações escondidas nessa proposta, que envolve a redução da condição de professora à de tia.

As mulheres são professoras e, para se manterem com qualidade na profissão, têm que estudar, pesquisar, relacionar e aprender com as crianças, bem como compreender que a luta pelos direitos profissionais deve alicerçar a carreira docente.

Aceitar a identificação de tia é um presente? Aceitar a identificação de tia não significa nenhuma valoração à figura profissional da professora.

Aceitar ser chamada de tia pode ser uma armadilha? Aceitar a nomeação tia significa renunciar a algo imprescindível para a docente que é a sua responsabilidade profissional.


Ser professora é ter dom, é ter vocação, é ter jeitinho ou simplesmente gostar de crianças?

Aqui vale mais uma vez, refletir com Paulo Freire (1997), pois, a profissão de ensinar, que também engloba aprender, é uma tarefa prazerosa e exige muito das docentes: é preciso seriedade, preparo científico, físico, emocional e afetivo. É um cuidar do fazer docente que demanda coragem e insistência.

Nas palavras do mestre, “é preciso ousar para dizer, cientificamente e não ‘blá-blá-blantemente’, que estudamos, aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para ficar ou permanecer ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos [...]. É preciso ousar, aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que nos expomos diariamente (p. 29).

Simplesmente, a ideia de que para ser professora na educação infantil basta ser mãe não faz o mínimo sentido. Reduzir a ação docente na educação infantil estritamente aos cuidados é também empobrecer a atuação profissional, além de denotar uma visão ultrapassada de quem nos analisa por esse ângulo. Para atuar com crianças pequenas, em toda a sua sabedoria, complexidade e sensibilidade, é necessário sim ter formação acadêmica. E vale dizer: a criança diariamente nos desafia!

Ao alcançar a qualificação necessária, a professora se conscientiza de que a docência “não é uma vocação ou um ‘chamado’, ao qual se atende por ser mulher; ao perceber que o magistério é uma profissão que exige sólida formação pedagógica, esforço, dedicação e competência e espírito de classe” (BRUSCHINI, AMADO, 1988, p. 11)[v].

 

Será que é possível se relacionar com as crianças em uma relação de aprendizagem na educação infantil sem usar o termo familiar “tia”?

A afetividade na educação e a cognição andam de mãos dadas. Entendemos a afetividade como uma dimensão intrinsecamente importante para o desenvolvimento integral, que envolve o autoconhecimento: o gosto, medo, sentimentos e personalidade. A amorosidade está na forma como nós, professoras, iremos atender a criança, compreendendo suas particularidades, percebendo-a como sujeito de direitos em sua subjetividade. O respeito e o afeto na relação com a criança acontecem em uma instituição que não é a casa dela, mas é um lugar de aprendizagens múltiplas e carinho mútuo.

As crianças e as famílias vão percebendo que há afetividade nessa relação. E que, juntamente com a afetividade, a professora deve responder profissionalmente por muitas questões que compõem o cotidiano da instituição. Por isso, é importante que a docente saiba qual é o papel que está assumindo e qual é a marca que está deixando nas crianças que passam por sua carreira profissional.

A relação da professora com as crianças é de muita proximidade, construímos laços e nos envolvemos emocionalmente. Nessa mesma direção, produzimos práticas educativas e nos esforçamos para sermos presença significativa na relação com o saber e no desejo de conhecimento. Não fazemos uma docência menor e, nesse sentido, somos também professoras. Que não nos esqueçamos – ao reconhecer a criança como uma pessoa no mundo, produtora de cultura e cidadã com direitos, devemos também reconhecer que as primeiras etapas educativas que compõem a trajetória dos seres que se humanizam socialmente são tão importantes e fundamentais quanto outras que acontecerão no decorrer de sua história e, ainda, que em qualquer momento da vida, podemos necessitar novamente de cuidados e de educação de uma pessoa que se profissionalizou.

 

Notas

[i] https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar.

[ii] ARCE, Alessandra. Documentação oficial e o mito da educadora nata na educação infantil. Cadernos de pesquisas, n.113, p.167 – 184, julho/2001.

[iii] NOVAES, Maria Eliana. Professora primária: mestra ou tia. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1992.

[iv] FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d´Água, 1997. Disponível em: <<http://forumeja.org.br/files/Professorasimtianao.pdf>&gt>>.

[v] BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. AMADO, Tina. Estudos sobre mulher e educação: algumas questões sobre o magistério. Cad. Pesq., São Paulo, n. 64, p. 4-13, fev. 1988.

 

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