Raoni Perrucci Toledo Machado

Professor da Faculdade de Ciências da Saúde/ Departamento de Educação Física da UFLA e coordenador do Núcleo de Estudos em Jogos Eletrônicos e E-sports

 

Desde seu surgimento na década de 1960, os Jogos Eletrônicos foram ganhando cada vez mais poder de impacto cultural e econômico em nossa sociedade, até que se desenvolveram a um ponto no qual, no inicio deste século, começaram a atrair a atenção de pesquisadores de diversas áreas. O impacto cultural pode ser, de certa maneira, medido pelo grande número de programas na televisão que se dedicam integralmente a essa temática, presente em todos os canais brasileiros de esporte de TV a cabo; pela existência de um canal exclusivo de transmissão de jogos pela internet, a Twitch TV; pela dedicação de plataformas gigantes e já consagradas, como o Youtube e o Facebook, que incluíram o canal “gaming” para canalizar este conteúdo, bem como pela realização da Brasil Game Show, a maior feira dessa temática na América Latina, que reúne, em 4 dias, aproximadamente 400 mil pessoas.

A característica de criar, reproduzir e transmitir torna os jogos eletrônicos um importante elemento cultural. Com a possibilidade dos jogos on-line, a apropriação dessa criação se torna multicultural: jogadores entram em contato com outros jogadores em qualquer lugar do mundo, com visões distintas do mesmo fenômeno, interagindo em um mesmo local.

Os jogos eletrônicos, acima de tudo, são jogos. Por isso, é a base lúdica que permeia todo esse processo e que está sofrendo uma grande transformação em sua tradicional forma de se manifestar. Não estou dizendo aqui que essa mudança é boa ou ruim, e sim que é uma mudança e que precisamos compreendê-la. A ludicidade enquanto produção cultural acompanhou o desenvolvimento tecnológico da humanidade. Logo no inicio da era tecnológica, enquanto os primeiros computadores eram criados e desenvolvidos, as primeiras formas de aproximação lúdica com a tecnologia também foram aparecendo.

Os primeiros jogos não tinham grandes objetivos, eram apenas “truques” tecnológicos que transformavam um equipamento para um determinado fim em uma manifestação lúdica. Esses equipamentos começaram então a serem feitos exclusivamente para a reprodução do jogo, saindo dos laboratórios especializados e sendo jogados nas casas das pessoas.

Conforme a tecnologia avançou, os jogos foram ganhando em cores e complexidade. No inicio eram jogos “infinitos”, como o clássico River raid, do Atari. O objetivo nesses jogos era fazer o máximo de pontos possíveis. Depois foram surgindo personagens, tal como o famoso Super Mario Bros, da Nintendo. Esses personagens foram ganhando uma história própria, sem que, contudo, ela estivesse inserida nos jogos. As primeiras formas mais populares de disputa eletrônica, como o Street Fighter II e as primeiras versões do FIFA Soccer, ocorriam com os jogadores controlando os personagens a partir da mesma máquina.

A partir disso, e com mais um salto tecnológico, começou a ser possível interferirmos na jogabilidade, modificando nossa experiência de jogar de acordo com nossos próprios desejos. O local onde essa interferência é feita, ou seja, o local onde podemos “entrar” no ambiente virtual, é denominado de “ciberespaço”, e a produção de conhecimento que se dá a partir dessa interação é o que se denomina de cibercultura.

A geração seguinte é marcada pela possibilidade de jogar on-line e, junto com isso, o aparecimento do conceito de e-sports, ou seja, esportes eletrônicos. Os jogos on-line trazem uma nova possibilidade dentro da cibercultura. Pessoas em lugares diferentes, com características diferentes, histórias diferentes, podem interagir dentro do ciberespaço sem carregar nenhuma das características da “vida real”, sem os “rótulos” que muitas vezes são colocados nas pessoas em encontros presenciais. Ao mesmo tempo, e como conseqüência justamente dessa diversidade cultural, podemos construir algo novo a partir da interação mediada pelo ambiente virtual. Essa situação é o que estamos chamando de “ciber multiculturalismo”.

Contudo, como essa construção multicultural acaba sendo específica para cada jogo, e mais específica ainda para cada interação entre jogadores também específicos, ela está em constante transformação. Essas transformações se dão a partir de contextos individuais únicos, trazendo cada qual uma perspectiva diferente de um mesmo “problema”, criando algo novo a partir da zona de intersecções entre os diferentes olhares. Por isso, incluímos o conceito da hibridização cultural, culminando com o “ciber multiculturalismo hibrido”.

O Movimento Olímpico também está “pegando carona” nessa área. Entre maio e junho de 2022, foi realizada a Série Olímpica Virtual. Organizada pelo Comitê olímpico Internacional, contou apenas com jogos eletrônicos para a sua realização e foi o primeiro passo para a entrada deles no programa Olímpico de fato.

Eu fui convidado pela Academia Olímpica Internacional a fazer a apresentação desta pesquisa em sua sede, em Olímpia (Grécia). O evento contou com representantes de 74 países que, por uma semana, puderam discutir este e outros temas relativos ao futuro do movimento olímpico. O reconhecimento por parte da maior organização esportiva mundial foi uma honra, demonstrando que a criação do Núcleo de Estudos em Jogos Eletrônicos e e-sports no departamento de Educação Física da UFLA, em 2017, e as pesquisas que temos realizado estão na dianteira das discussões sobre esta temática no mundo.

 

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