Por Vera Simone Schaefer Kalsing

Docente da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas, Educação e Letras (Faelch/UFLA)

 

As relações de gênero em nossa sociedade podem ser abordadas de muitas formas. Utilizo, neste breve texto, um artefato cultural bastante interessante, um longa-metragem, por meio do qual desejo propor uma reflexão a respeito das relações entre os sexos como relações de poder ancoradas e alicerçadas em uma sociedade patriarcal, neste caso, a brasileira.

Lançado em 2017, sob direção de Breno Silveira e roteiro de Patrícia Andrade, Entre irmãs consiste em um longa-metragem ambientado simultaneamente no sertão pernambucano e na capital, Recife, nos anos de 1930. O roteiro aborda com muita sensibilidade e riqueza de detalhes a sina de duas irmãs que seguem trajetórias de vida completamente distintas, porém, ambas sofrem as agruras do sistema patriarcal.

As duas irmãs, que foram criadas pela tia, viviam em uma cidade no interior do estado de Pernambuco, a pequena Taguaritinga do Norte. Emília, interpretada pela atriz Marjorie Estiano, almejava se casar e mudar para a capital, provavelmente como muitas meninas ou mulheres de sua época. E Luzia, protagonizada por Nanda Costa, que, por conta de ter o braço atrofiado após uma queda de árvore na infância, havia se conformado com seu “destino”, o de que ficaria por “ali mesmo”; como ela se percebia como “aleijada”, não alimentava grandes ilusões sobre um possível casamento. A tia Sofia havia lhes ensinado o ofício de costureira, que elas desempenhavam com maestria, inclusive Luzia, com seu braço de “vitrola”, como era chamada.

Certa vez, um grupo de cangaceiros, conhecido como “O bando de Carcará”, chegou à cidade e, ao colocar os olhos em Luzia, Antônio Teixeira, seu líder, ordenou que ela fosse com eles. Para a surpresa da irmã e da tia, Luzia tomou a decisão de “aceitar o pedido”. O que, obviamente, não consistiu exatamente em um aceite, considerando que Luzia não teve muito direito de escolha.

Com a partida súbita de Luzia, a tia adoeceu e veio a falecer. Emília, que nesse meio tempo havia conhecido um rapaz da capital, supunha ter encontrado o seu tão sonhado “príncipe encantado”. Ao ser pedida em casamento, nem percebeu que o pedido, assim como o próprio “enlace”, foram realizados em condições deveras apressadas. Os recém-casados foram então morar na capital, realizando, desse modo, o grande sonho de Emília. Todavia, ao chegar à cidade, a despeito de seu deslumbre com a bela Recife dos anos 30, a recém-casada, além de ter de lidar com a sogra que não a recebeu com grande entusiasmo por ela não pertencer aos ditos “nobres” da região, percebeu que havia “levado gato por lebre”, ou seja, o marido não era bem o que se esperaria de um príncipe.

Logo após sua chegada, ela se deparou com a explicação para o casamento ter ocorrido às pressas, que a deixou perplexa. Em conversa com o sogro, que acabara de conhecer, esse afirmou enfaticamente: “Apoiei imediatamente a decisão de Degas (o filho) de corrigir o erro que ele cometeu. Ele não poderia deixar Taguaritinga manchando a honra de uma moça honesta como você”. Ou seja, ele mentiu para que o casamento se realizasse. Mais tarde, ao participar de um baile de Carnaval, junto à família do novo marido, Emília o flagrou com seu amante, aos beijos.

Interrompo a exposição da trama para tecer algumas reflexões a respeito do que é abordado no filme e as relações patriarcais. É necessário compreender que vivemos em uma sociedade patriarcal e que, para que essa estrutura se mantenha, são indispensáveis vários subsistemas que fomentam essa engrenagem.

As ideias que são reproduzidas, as normas sociais, os valores, as crenças e as próprias microestruturas é que reproduzem toda a estrutura, cristalizando-a. Ou seja, se existe homofobia, LGBTfobia, transfobia, é porque existe a heteronormatividade. A heteronormatividade determina a existência de padrões, que são concebidos dentro de uma sociedade heteronormativa. Dentro desta sociedade, existem papéis que seriam mais apropriados para homens e outros mais apropriados para mulheres. A homofobia estaria, deste modo, dentro do patriarcado, porque a sociedade constitui-se como heteronormativa. As relações e os padrões heteronormativos fazem parte da estrutura patriarcal da sociedade.

Considero o filme Entre Irmãs muito emblemático para entendermos como essas relações funcionam. Uma das personagens é nitidamente vítima do machismo, da sociedade patriarcal (não que a outra não seja) e, de certo modo, o homem também, embora seja problemático colocar nesses termos, que o homem seja vítima do patriarcado. Contudo, na falta do melhor termo, digamos que ele seja também um pouco vitimado pelo sistema patriarcal, por conta da heteronormatividade. Ou, então, poderíamos talvez afirmar que ele é refém da heteronormatividade. Um homem branco, pertencente a uma família nobre da época. A sociedade local espera dele certo comportamento dentro de um padrão, de um modelo de masculinidade hegemônico e de uma estrutura patriarcal alicerçada em valores cristãos: “Homem e mulher são filhos de Deus, feitos para procriar”.

O casal, todavia, possui a capa protetora da branquitude. Emília sofre preconceito por ser mulher, pobre, do interior. Muito forte na época era a oposição entre capital e interior. E, obviamente, as relações de classe, se fazem presentes neste contexto. Agora, se fosse negra, ela nem teria acesso a essa condição social “nobre”. Basta observar a cor da empregada, que afirmou trabalhar na família “desde que se entende por gente”. Era muito comum no contexto temporal do filme meninas pobres do interior, quase sempre negras, irem trabalhar na capital e morarem na casa dos patrões, fazendo assim “quase parte da família”, não?

E é então que parto para a discussão sobre o termo “sina”, que considero extremamente relevante para essa discussão desde uma perspectiva feminista. Até que ponto as mulheres têm escolha? Quando elas realmente têm escolha? Quais mulheres possuem escolha? Penso nas irmãs, se elas tiveram escolha. Luzia, ao supostamente “escolher” ir com o cangaceiro, ao ser perguntada por que havia ido com “eles”, o bando de Carcará, ela respondeu: “Pra enfrentar o medo de perder a única pessoa que eu tenho no mundo. Antes que ela me deixasse, eu resolvi partir”. Ou seja, como sabia que a irmã iria embora no dia em que encontrasse seu suposto “príncipe”, ela aceitou a sina imposta pelo cangaceiro. 

Emília, por sua vez, por acreditar no sonho de que poderia se tornar uma “dama” da capital, foi enganada pelo rapaz bonito e bem distinto da cidade, filho de família nobre, que lhe prometeu “dar tudo o que ela sempre sonhou” (fala de Degas). Envolvendo-a em uma vida de mentiras, ele a obrigou a fazer parte de um casamento de fachada. Quem sabe, ao escolhê-la, ele já supunha que, sendo uma “matuta”, jamais descobriria a sua verdadeira identidade sexual? Não foi bem o que aconteceu…


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