jogador de futebol em campo

Mais do que um simples esporte, o futebol é instrumento de crítica da realidade social, cultural e política no Brasil por meio das canções.

 O futebol reúne condições certeiras para ser amado: as regras são fáceis de entender, é emocionante e, o melhor de tudo, não precisa de quase nada para acontecer. Basta algo redondo para rolar entre os pés, e até dois pares de chinelo, no improviso, servem de trave. No Brasil, o esporte dribla os campos e marca presença em várias esferas da sociedade brasileira, como na cultura e na política. Na Música Popular Brasileira (MPB), na Bossa Nova e no samba, os músicos Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, João Bosco, Tom Jobim, Jorge Benjor e, principalmente, Chico Buarque “cantaram” o futebol. 

Na Faculdade de Ciências da Saúde da UFLA, pesquisadores investigaram a dramatização do futebol nas composições de Chico Buarque, um dos músicos com maior repertório destinado ao esporte no Brasil. O estudo, orientado pelo professor Bruno Rodrigues, é conduzido pelo pesquisador Michel Mansur e analisa canções como “O Futebol”, “Com Açúcar e com Afeto”, “Até o Fim”, “Partido Alto”, “Doze Anos”, “Bom Tempo”, “Pelas Tabelas”, entre outras.

O estudo recorre ao antropólogo Roberto Da Matta para explicar que a sociedade brasileira pode ser analisada por seus “ritos” e “dramas”, que indicam normas, relações e instituições em processos sociais. Se o futebol e a música retratam a cultura brasileira, é porque documentam, segundo o pesquisador, os sentimentos populares, o senso comum, a linguagem do povo e abrigam leituras possíveis, por mais ambíguas e contraditórias que sejam.  “O futebol dos campos, das rodas de violão, dos palcos, das mesas de bar revela traços de brasilidade da própria sociedade brasileira”, informa.  

Michel Mansur afirma que as relações sociais dramatizadas nas músicas do compositor Chico Buarque permitem compreender o futebol como instrumento de representação da sociedade brasileira. O pesquisador sugere que o futebol precisa ser cada vez mais analisado como uma forma diferente de observar o fenômeno esportivo em geral e o próprio futebol em particular. “As reflexões passam pela importância do futebol no cotidiano dos torcedores, e chegam a analisar seu poder, ou não, de manutenção de uma determinada ordem política”, frisa. 

Outra conclusão do estudo aponta para a importância da música popular brasileira como veículo de difusão de ideias sobre a nossa sociedade, inclusive sobre o futebol, que, “como um fenômeno de grandes proporções, muitas vezes acaba sendo confundido como algo à parte da sociedade. Não é essa a compreensão de Chico Buarque. O compositor, em suas letras, dramatiza a realidade cultural e política brasileira, além de tratar de aspectos típicos do seu momento histórico de composição”, esclarece. 

Segundo o pesquisador, as dramatizações do futebol no País começam juntamente com o nascimento do samba no Brasil. “A modalidade esportiva e esse gênero musical são contemporâneos. Em 1916, o primeiro samba foi gravado no Rio de Janeiro, na mesma época em que o futebol inicia o seu processo de organização da cidade”, explica Michel. 

Outra evidência data da profissionalização do futebol, ocorrida em 1933, período em que Pixinguinha e Ismael Silva se projetavam no cenário musical, enquanto Carmem Miranda exportava a música brasileira. Noel Rosa, por exemplo, abordava temas cotidianos da cidade carioca, dentre eles o futebol. E não para por aí: o pesquisador contextualizou a relação entre o esporte e a música popular brasileira durante o século XX.  

 

O futebol na música de Chico Buarque

A dramatização do futebol por via musical nas canções de Chico Buarque aborda diferentes aspectos da cultura brasileira. Um deles é deslocar o esporte para o status de arte, comparando jogadores a artistas, a exemplo da música “O Futebol”. Nela, o músico se refere aos seus cinco jogadores favoritos por metáforas, intercaladas com contextualizações que lançam o futebol ao estado da arte. “Eles são citados no final da música em ritmo progressivo como se fizessem uma tabela dentro das quatro linhas: Mané (Garrincha), Didi, Pagão, Pelé e Canhoteiro. Nos primeiros versos, Chico faz referência ao seu “sonho” de ser um jogador de futebol, a exemplo do rei Pelé. Chico também descreve poeticamente o estilo de jogo de Garrincha, que costumava atordoar os seus marcadores”, conta Michel. 

O pesquisador Michel Mansur lembra que o próprio compositor e cantor Chico Buarque, no documentário “O Futebol”, dirigido por Roberto de Oliveira em 2006, comenta a visão do futebol-arte. Na obra, Chico diz: “o trabalho do compositor, do pintor (...) Eu coloco o futebol acima dessas artes todas. Não que eu considere o futebol uma arte superior a estas. Mas há certos momentos de genialidade do futebol, daquela capacidade de improviso, alguns relances que acontecem no futebol, que artista nenhum consegue produzir”. 

De acordo com a análise realizada na pesquisa, Chico Buarque utiliza o futebol como tema de suas músicas por entendê-lo como um lugar de síntese da cultura brasileira. “O compositor estabelece relações entre o futebol e a música, entre o compositor e o jogador, colocando as duas manifestações como obras de arte a serem apreciadas. “Na música ‘O Futebol’, a arte produzida por Pelé é intangível. Essa dramatização proposta por Chico reafirma a importância do futebol na sociedade brasileira, na medida em que ele iguala uma manifestação tipicamente popular à erudição de uma obra de arte”, diz o pesquisador. 

Chico também destaca a desigualdade da sociedade brasileira. Nesse quesito, na canção “Até o fim”, o verso “não sou ladrão, eu não sou bom de bola”, seguido por “um bom futuro é o que jamais me esperou, mas vou até o fim”, revela como o futebol é incorporado à cultura brasileira como uma das únicas possibilidades de mobilidade social para a população pobre. 

O mesmo se repete na composição “Partido alto”, quando o compositor diz “Deus me deu perna comprida e muita malícia, pra correr atrás de bola e fugir da polícia, um dia ainda sou notícia”.  É o que explica o pesquisador da UFLA. “O sucesso no futebol aparece como uma alternativa que permite certa mobilidade social. O esporte extrapola sua dimensão esportiva a ponto de nos fazer compreender, por meio da música, as nuances mais profundas do País”, afirma Michel Mansur.   

Já na música “Doze Anos”, o eu-lírico saudosista descreve as brincadeiras de sua infância, em referência às horas destinadas a bater bola na rua. Ou seja, a música aborda a realidade cotidiana marcada pelo futebol.  “Ao citar o termo futebol de rua, Chico resgata o contexto da época, em que mulheres não tinham permissão de jogar futebol e que boa parte da infância dos meninos girava em torno do futebol de rua e, portanto, da própria rua”, ressalta.   

Nas canções, Chico Buarque também dramatiza a rivalidade entre clubes de futebol, a paixão do torcedor, a relação do pai de família apaixonado pelo esporte, o humor dos torcedores com as vitórias e as derrotas do time do coração, o trabalhador em seu tempo de lazer em vingança contra o trabalho e o empregador, a sociabilidade masculina em bares e botequins, racismo e muito mais.