Por Andréa Portolomeos
Professora de Literatura na graduação e na pós-graduação em Letras da UFLA
Quando me convidaram para escrever este artigo sobre a função da literatura na pandemia, um primeiro desafio logo me veio à cabeça: como me desprender da dicção acadêmica que me acompanha há tanto tempo? Talvez em sala de aula, ao falar sobre literatura, essa dicção se dilua frente ao olhar interrogativo dos alunos sobre questões teóricas, frente ao diálogo espontâneo a que a arte conduz, despertado pelos sentimentos individuais, originários das leituras. Sendo assim, tentarei retomar um pouco esse tom a partir do qual ensino a leitura literária nas minhas aulas sem, no entanto, fazer remissão aqui às correntes teóricas que me amparam nesse processo de ensino-aprendizagem.
Dito isso, vou tentar explicar que a função da literatura em tempos de pandemia (mas também fora desses tempos) é precisamente não ter função nenhuma e, paradoxalmente, essa é a sua mais potente serventia. Quando seleciono uma obra literária para leitura, escolho entrar num território que não corrompe nem edifica de acordo com padrões estabelecidos; ali simplesmente encontro personagens e enredos que são capazes de descortinar as minhas próprias emoções (medos, dores, preconceitos, alegrias etc), deixando-me mais consciente delas. Sendo esse processo de identificação com o texto singular e único, dificilmente vamos aprender as mesmas coisas a partir de um mesmo texto, o que o torna, então, refratário a ensinamentos ou instruções pedagógicas. Ou seja, a leitura literária, no seu sentido mais pleno, é uma das experiências mais solitárias que existem e, assim, a obra mais aponta para as nossas diferenças uns em relação aos outros que para nossas semelhanças. Tentando explicar de outro modo, quando digo que a literatura não tem função pré-determinada, estou dizendo também que esse é seguramente um dos territórios mais livres para você existir, exercitar sua subjetividade. É importante esclarecer que existir através da realização do seu imaginário não significa escapismo da realidade empírica, pois o imaginário – através do ato de leitura – pode estimular uma reorganização de seus sentimentos, favorecendo inclusive a consciência sobre emoções que ainda não tinham sido acessadas por você, mas que sempre estiveram latentes na sua atuação no mundo.
Sei que o processo de enfrentamento e leitura do texto literário implica hoje, em pleno século XXI, um grande esforço, tendo em vista o fato de pertencermos a um contexto histórico marcado pela onipresença de imagens audiovisuais que, na maioria das vezes, incitam um comportamento padronizado de consumo. É claro que podemos pensar mais dialeticamente sobre a potência da imagem, para além de seu consumo rápido, mas esse não é o foco deste texto. Win Wenders, aclamado diretor alemão de cinema que completou 75 anos em agosto deste ano, explorou a paradoxal dificuldade de comunicação entre pessoas neste contexto cada vez mais tecnológico que, em tese, tornaria-nos mais próximos uns dos outros. Seu depoimento no belíssimo documentário “Janela da Alma”, de 2001, com direção e roteiro de João Jardim e Walter Carvalho, problematiza a grande maioria das imagens que nos cercam cotidianamente como imagens que não tentam dar um sentido a algo, mas vender algo. Em caminho oposto, segundo Wenders, está uma das necessidades mais fundamentais do ser humano, que é o desejo de que as coisas comuniquem algo, o que explicaria em parte nosso prazer desde crianças em ouvir histórias. Assim, as narrativas literárias nos confortam à medida que sua estrutura - que aciona nosso imaginário e nossas emoções na coprodução ou leitura do texto – ajuda-nos a criar sentidos para as nossas próprias vidas.
Mesmo quando as imagens que cotidianamente nos cercam pretendem comunicar sentidos, a superabundância delas também parece torná-las inócuas no processo de fortalecimento de nossas subjetividades, de autoconhecimento, de conhecimento sobre a vida. Assim, o excesso gerado pela comunicação virtual na pandemia - podemos pensar, por exemplo, no excesso de lives sobre todos os temas que chegam às nossas casas diariamente, em todos os horários – mais nos informa (quando muito) do que produz reflexões sobre inúmeros e diferentes temas. Então, talvez essa seja uma realidade que mais nos angustia pela impossibilidade de uma efetiva interação ou comunicação que ameniza nossas solidões no isolamento social. Dizendo de outra maneira, a superabundância de estímulos através de imagens veiculadas pela internet, às quais estamos muito atrelados especialmente no contexto da pandemia, pode favorecer um maior distanciamento entre nós, na medida em que a demasia é um obstáculo para uma comunicação satisfatória, pois definitivamente não conseguimos prestar atenção e processar um enorme volume de informação num curto espaço de tempo.
Ainda sobre esse excesso no contexto audiovisual, Wenders observa que já não somos capazes de ver e nos emocionar com histórias simples num universo de “efeitos de choque” a cada dia mais editados nas imagens. Isso significa que as pequenas coisas do dia a dia tendem a nos dizer muito pouco ou nada hoje em dia; em geral, as histórias e as vidas ordinárias de nossos semelhantes nos emocionam muito pouco ou quase nada. Desse modo, infelizmente não creio que saiamos de uma experiência bastante imersiva na internet, ao longo da dura experiência da pandemia, seres humanos mais sensíveis para a realidade alheia e mais atentos às nossas próprias emoções. Embora tenhamos acesso a tanta informação nestes tempos, o exercício da nossa subjetividade me parece muito comprometido, abatido por uma sensação de impotência.
Não se trata aqui de uma ingênua defesa da leitura literária em detrimento das inúmeras interações que fazemos na internet, mas de problematizar o excesso de conteúdo audiovisual como produtor de conhecimento sobre a vida e sobre o mundo; de discutir a internet como único lugar de refúgio em tempos de pandemia; de pensar o texto literário, as emoções experimentadas com maior liberdade no ato de leitura, como uma interessante via de acesso a nós mesmos para o enfrentamento de nossas solidões. Como diz Alberto Caeiro no poema XXIV de “O guardador de rebanhos”, isso de reconhecer os sentimentos como via legítima de acesso ao conhecimento “exige um estudo profundo”, “uma aprendizagem de desaprender” sobre o legado da razão em nossa sociedade. Então me parece que nestes tempos tão difíceis, a literatura pode nos ensinar sobre o que não somos mais capazes de ver, bombardeados que estamos pelo excesso. Ela pode nos ensinar que “O essencial é saber ver/ Saber ver sem estar a pensar/ Saber ver quando se vê/ E nem pensar quando se vê/ Nem ver quando se pensa”.
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