Uma dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras (PPGA/UFLA) analisou a forma como a carreira de tatuador é vivenciada e interpretada por esses profissionais no Brasil. Entre os resultados, estão a identificação de um tipo de tatuador ainda não caracterizado em estudos anteriores - o tatuador de redes sociais, e a evidência de uma controvérsia que perpassava a carreira no momento da coleta de dados: de um lado, a presença crescente de orientações para a estruturação do trabalho, como normas de biossegurança a serem seguidas, e de outro o fato de que a atividade ainda não estava formalizada na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO).
Participaram da pesquisa nove tatuadores, selecionados a partir da busca por estúdios de tatuagem cadastrados na Secretaria de Saúde do estado de São Paulo. Dos 87 estúdios contactados, 10% retornaram ao chamado da pesquisa, número adequado para análise qualitativa. O estado de São Paulo se destacou como contexto para o estudo por ter sido o local de ingresso e expansão dessa atividade no Brasil, com iniciativas de formalização e regramento da prática. De acordo com dados do Sebrae, no estado são mais de 7 mil empresas ativas, correspondendo a 30% do total do País.
Segundo as pesquisadoras - a autora da dissertação, Fernanda Cavalheiro Ruffino Rauber, orientada pela professora Flaviana Andrade de Pádua Carvalho e co orientada pela professora Mônica Carvalho Alves Cappelle - o estudo traz resultados e discussões pertinentes para o desenvolvimento do campo de pesquisa relacionado às carreiras não tradicionais, ao mesmo tempo em que apresenta um quadro sobre a carreira de tatuador útil aos profissionais da área, para que possam refletir sobre suas trajetórias, buscar o aprimoramento das práticas e das condições de trabalho, constituindo uma referência também para que os que pretendem ingressar na carreira.
Entre o formal e o informal
Um dos resultados apresentados no estudo diz respeito à dimensão que a pesquisadora analisa como “objetiva” para a carreira, e expressa a incoerência entre as formalidades que os tatuadores devem seguir e a ausência de reconhecimento da ocupação na CBO até então. Essa ausência foi relacionada a um sentimento de exclusão dos tatuadores perante outros trabalhadores e figurava, para eles, como evidência do despreparo das instâncias públicas responsáveis por essas avaliações. Em março de 2023, essa formalização se concretizou.
De acordo com o estudo, ao todo, a atividade está relacionada a 17 regramentos, entre projetos de lei, portarias, resoluções e nota técnica, produzidos entre os anos de 1992 e 2016. Na percepção dos entrevistados, as normativas vigentes da Vigilância Sanitária são benéficas, já que estão relacionadas a preocupações com segurança, higiene e qualidade do trabalho. Eles entendem que elas contribuem para o reconhecimento da carreira e do trabalho com a tatuagem pela sociedade, e para a profissionalização das atividades, colaborando também para a construção de uma imagem projetada favorável dos estúdios de tatuagem.
O papel das redes sociais na carreira
A dissertação identificou, pela percepção dos entrevistados, sete tipos de tatuadores, sendo que seis deles têm correspondência com tipificações já relatadas em estudos anteriores: aprendiz ou iniciante, profissional, informal ou clandestino, formal ou regulamentado, artista ou estrela, mestre ou professor. Uma nova tipificação surgiu com a pesquisa: o tatuador de redes sociais, para o qual a carreira se estabelece também com a virtualização do contexto. Neste sentido, o tatuador é aquele “que atua fortemente nas redes sociais. Seu trabalho é prestigiado em função do elevado número de seguidores e não somente por suas habilidades técnicas”. Esses profissionais atendem geralmente por horário marcado via redes sociais. O destaque e o sucesso na carreira, nesse caso, dependem fortemente de habilidades midiáticas desse grupo.
As redes sociais aparecem nas entrevistas também como fator importante em outros aspectos, além da tipificação dos profissionais. Os tatuadores evidenciam que elas passaram, com a pandemia, a ter maior influência na construção da carreira, tanto para contato com clientes quanto para obter reconhecimento social e legitimidade. Os resultados revelaram ainda, mudanças significativas nas formas de adquirir conhecimento, aprender e gerir estúdios de tatuagem. Ao mesmo tempo em que as redes sociais e aplicativos de mensagens foram apontados pelos tatuadores como elementos-chave para o desenvolvimento de suas carreiras, auxiliando inclusive no processo de treinamentos e capacitações (já que são fonte de consulta de desenhos, cursos, atualizações tecnológicas, discussões de grupos), eles também as reconhecem como ambientes que trazem riscos e desafios, como a exposição a um ambiente hostil e altamente competitivo.
Motivações para a escolha da profissão
O estudo tem o diferencial de analisar, conjuntamente, a dimensão objetiva e a subjetiva para a construção da carreira. Na dimensão subjetiva estão, por exemplo, as experiências que influenciaram na escolha da profissão pelos tatuadores. As entrevistas narrativas revelam que essa escolha ocorre pelo contato inicial com a própria tatuagem, pelo sentimento de bem-estar, influência de pessoas próximas e por referências artísticas.
O contato com a tatuagem diz respeito ao momento em que os entrevistados viram uma tatuagem que os impressionou, ou que tatuaram seu corpo, por exemplo. Há também os que escolheram a ocupação pelo bem-estar que relataram experimentar ao desenvolver a atividade, comparando-a a outras ocupações ou profissões, de ambientes que eram contrários às suas expectativas e aspirações socioprofissionais. As carreiras também foram construídas por meio de relações sociais que apareceram como importantes, com entrevistados que relataram ter sido influenciados por parentes ou conhecidos que trabalhavam com tatuagem e lhes inspiraram. E, finalmente, houve quem se decidiu devido à perspectiva de fazer arte por meio da tatuagem.
O processo de aprendizagem
Como meios de aprendizagem que os levaram à prática, os entrevistados citaram as habilidades de desenho que possuíam desde a infância, além de cursos e treinamentos que ajudaram no desenvolvimento de traços e estilos.
Também marcam a história dos tatuadores o contato com espaços e práticas artísticas, por meio da dança e da música, ainda que não tenham sido exercidas como ocupação formal. Alguns fizeram a transição na carreira a partir de outras áreas, como segurança patrimonial ou operação de máquinas, evidenciando uma perspectiva menos previsível para a construção das trajetórias socioprofissionais.
Repercussões das carreiras com a tatuagem
Como repercussões advindas da carreira como tatuadores foram evidenciados o reconhecimento e a satisfação dos clientes, o reconhecimento da família e outros grupos sociais, aliados à abertura do próprio estúdio e ao alcance da estabilidade financeira. Já como aspectos negativos apareceram os momentos de incerteza e de instabilidade financeira, por exemplo.
Outra avaliação que demonstrou interferência na carreira são os estigmas atribuídos às pessoas tatuadas. Há familiares que não gostam, associam a presença da tatuagem à criminalidade e às drogas, o que leva o trabalho a ser desqualificado por alguns grupos sociais. Porém, os entrevistados percebem que essa concepção estigmatizada vem se alterando, dando lugar a um processo de valorização da carreira com a tatuagem representando uma forma de arte, um produto de consumo e o trabalho nos estúdios como atividade mercantil formal. A divulgação do trabalho como uma manifestação artística é percebida como um caminho que possibilita a reinterpretação social da carreira do tatuador.
A dissertação, intitulada "Carreiras com a tatuagem: uma análise temática sobre as trajetórias de tatuadores", foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e incluiu, no processo metodológico, além das entrevistas narrativas, as técnicas de pesquisa documental e análise de conteúdo temática.
Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.