Quando se ouve falar em florestas alagadas, logo vem à memória imagens da Amazônia. Mas na região Sudeste do Brasil também há ecossistemas que assumem essa característica de várzea de forma sazonal, nas estações chuvosas do ano, e têm sua existência ameaçada pelas mudanças climáticas. É o que evidencia uma pesquisa pioneira realizada por pesquisadores do Laboratório de Fitogeografia e Ecologia Evolutiva  do Programa de Pós-Graduação em Botânica Aplicada da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em parceria com a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) e a Universidade de Zurique, na Suíça.

Após medições de campo realizadas ao longo de um ano e meio em seis regiões do estado de Minas Gerais, os cientistas concluíram que o regime de inundação - incluindo o número de eventos de cheias e sua respectiva duração - é um dos principais impulsionadores da diversidade da composição vegetal e funcional das florestas sazonalmente alagadas. Portanto, a regularidade e a previsibilidade das cheias são cruciais para esses ambientes.

Por estarem adaptadas a um regime sazonal, as plantas e o funcionamento das florestas alagáveis de Minas são sensíveis a mudanças no ciclo hídrico. “Alterações como a longa estiagem observada este ano podem prejudicar, por exemplo, o controle da erosão, a regulação do ciclo da água, a purificação da água e a regulação climática local e global. É importante lembrar que essas mudanças têm impactos sociais, podendo ameaçar a continuidade do acesso à água, atividades como pesca e agricultura e o funcionamento de usinas hidrelétricas”, alerta o docente da UFLA Rubens dos Santos.

A pesquisa é a primeira a explorar, em campo, as relações entre o regime de inundações, as condições ambientais, a composição da vegetação e sua diversidade funcional em remanescentes de florestas sazonalmente alagadas localizadas nas bacias dos rios São Francisco e do Rio Grande, que desempenham grande importância para a agricultura e a produção de energia hidrelétrica na região Sudeste do Brasil. Ambas as bacias apresentam padrões de fluxo altamente sazonais, com picos ocorrendo entre dezembro e março e fluxos baixos entre julho e outubro. O monitoramento incluiu duas estações chuvosas de seis regiões, localizadas na foz dos rios Capivari, Jacaré e Aiuruoca, na bacia do Rio Grande; Jequitaí, Verde Grande e Carinhanha, na bacia do São Francisco.

ecounidades1Essas regiões cobrem uma área de quase 800 mil km2 e abarcam uma grande biodiversidade. Ao longo de sua extensão, encontram-se três biomas: Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga. Além disso, cada uma das florestas é composta por cinco “ecounidades”, que se diferenciam por características geomorfológicas, pelo regime de inundação e pela vegetação. São elas: dique marginal (DM), terraço inferior (TI), terraço superior (TS), planície inferior (PI) e planície superior (PS).

O dique marginal (DM) é adjacente ao canal ativo do rio e normalmente possui uma vegetação classificada como mata ciliar, característica de  florestas que circundam os leitos dos rios e evitam diretamente a erosão e o assoreamento. Atrás do dique marginal, frequentemente encontra-se uma lagoa marginal, um meandro abandonado com plantas adaptadas às cheias, mas sem árvores. Junto à lagoa marginal, encontram-se os terraços inferior (TI) e superior (TS), que são influenciados pelo nível da água na lagoa marginal e são regularmente inundados. O terraço inferior é caracterizado pelo elevado número de árvores multicaules. A planície inferior (PI) está localizada mais acima, às vezes em uma depressão suave, possui maior densidade de árvores e só é inundada ocasionalmente, em ciclos de grandes cheias dos rios. As planícies mais altas (PS) estão mais longe do rio principal e normalmente não são inundadas, mas seu lençol freático sofre a influência das inundações.



 

Composição da vegetação

Em uma das frentes de pesquisa, procurou-se analisar se a diferença de vegetação observada nas diferentes ecounidades é motivada pelos regimes de inundação, e se essa heterogeneidade ambiental leva a florestas funcionalmente diferentes nas ecounidades dentro da mesma região de várzea ou entre regiões de várzea diferentes.

Para a investigação, foram estabelecidas, em cada ecounidade, seis parcelas de vegetação com uma área de 400 m² (à exceção do Rio Carinhanha, onde foram estabelecidas três). Dentro de cada parcela foram medidas e identificadas todas as árvores com diâmetro à altura do peito (DAP, medido em 1,30 m) igual ou superior a 5 cm. Também foram coletadas  características funcionais das plantas, bem como dados detalhados de solo e clima.

equipe campoOs dados hidrológicos foram obtidos por meio de poços subterrâneos, instalados em duas parcelas de cada ecounidade. O poço possuía profundidade variando entre 0,5m e 5m, e foi equipado com sensor de nível de água. Os níveis de água foram monitorados durante pelo menos um ano, abrangendo todo o ciclo sazonal do rio, até no máximo dois anos.

A amostra incluiu 9.736 árvores pertencentes a 363 espécies. Os resultados evidenciaram que as distintas ecounidades apresentavam composições florísticas específicas e baixa sobreposição de espécies, ou seja, as espécies que ocorriam em uma ecounidade geralmente não estavam presentes em outra. As regiões estudadas demonstraram uma pronunciada heterogeneidade ambiental, particularmente em termos de frequência e duração das cheias, com diferentes números de eventos e diferentes durações, em cada ecounidade. 

Para quase todas as regiões da amostra, a maior percentagem de espécies exclusivas ocorreu nas ecounidades que foram menos influenciadas pelas cheias (planície inferior e planície superior). Não houve padrão de dissimilaridade funcional entre as ecounidades nas planícies estudadas.

“A variada gama de condições ambientais produzidas por essas diferenças na frequência e duração das cheias, juntamente com as características do solo, resulta em um grande número de habitats, que é um fator determinante para a coexistência de espécies tanto à escala local quanto regional. Portanto, as plantas, populações e comunidades individuais são provavelmente sensíveis a qualquer mudança no regime de cheias (número de dias de cheia, ocorrências de cheias e profundidade do lençol freático) que possa resultar de alterações climáticas ou do uso do solo”, afirma Fernanda Gianasi, doutoranda envolvida na pesquisa.

Regimes de inundação

equipe campo2Outra frente da pesquisa foi a descrição do regime de nível de água nas seis regiões estudadas. Foram medidos os níveis de água e caracterizadas a duração e a frequência das cheias nos locais de floresta. Os dados do nível da água também foram utilizados para identificar os fatores mais prováveis ​​de inundação nos terraços: precipitação local; pulso de fluxo, isto é, aumento do nível de água causado pela elevação da água subterrânea; ou pulso de inundação, aumento do nível de água causado pela inundação.

Além dos poços subterrâneos já mencionados, foram instalados nas parcelas das ecounidades tubos para captação de água superficial, equipados com registradores de nível de água, para monitorar inundações de águas superficiais. 

Nas regiões de foz de Capivari, Jacaré, Jequitaí e Verde Grande, os níveis de água foram monitorados em dois períodos chuvosos, de agosto ou setembro de 2021 até março de 2023. Já em Aiuruoca e Carinhanha, os níveis de água foram monitorados em um período chuvoso,  entre agosto ou setembro de 2022 e março de 2023. 

As medições de campo mostraram que os níveis das águas subterrâneas foram altamente dinâmicos, variando de mais de três metros abaixo da superfície a mais de um metro acima. A dinâmica do nível da água também variou nas planícies aluviais. Os terraços inferiores permaneceram inundados durante cerca de 40 dias por ano.  Os diques marginais da bacia mais seca do São Francisco ficaram inundados por períodos mais longos do que os diques da bacia do Rio Grande, possivelmente devido a diferenças na geomorfologia. Os locais da planície inferior raramente foram inundados e os locais da planície superior não foram inundados durante o período de estudo.

Entre os fatores mais prováveis de inundação, os dados indicaram que, pelo menos em parte, elas se devem às contribuições do fluxo excessivo, o que ressalta a importância da conectividade rio-planície de inundação para a troca de água, sedimentos e nutrientes. Isso significa que os fluxos acima do limite máximo são importantes para o funcionamento das florestas de várzea e que as alterações na frequência, intensidade e tempo das cheias devido, por exemplo, devido às alterações climáticas ou à alteração do uso do solo podem ter um grande impacto nessas florestas de várzea.

 

Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.

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