Nas regiões tropicais dos Andes, a predação de gado é a principal causa de conflitos entre humanos e ursos-andinos (Tremarctos ornatus), animais também conhecidos como ursos-de-óculos, uma espécie ameaçada de extinção e que representa os únicos ursos da América do Sul. Nessas regiões, mais especificamente no centro do Peru, a pequena vila de San Pedro de Churco vem, desde 2013, enfrentando esse conflito com os ursos-andinos devido à predação do gado da comunidade pelos ursos.
Após a criação de um convênio entre a Universidade Federal de Lavras (UFLA) e a Universidad Nacional del Centro del Perú (UNCP), pesquisadores das duas instituições foram até a vila, localizada no entorno do Santuário Nacional Pampa Hermosa, com o objetivo de diminuir o conflito. Por meio do estudo e de outras experiências ao longo dos Andes, a equipe levantou, por fim, quatro principais medidas que poderiam ser adotadas pela população.
Em uma primeira frente de intervenção, os pesquisadores consideram que, na vila, os moradores não possuem energia elétrica, o que leva ao corte de árvores para a obtenção de lenha para cozinhar. Reduzir a perda e degradação dos Bosques Alto-Montanos significa manter maior disponibilidade e quantidade de habitat, além de recursos vegetais e animais para a população local de ursos-andinos, diminuindo o risco de ataques ao gado. A implementação de sistemas silvipastoris (gado, árvores e pastagens são inseridos na mesma área para se obter madeira, carne ou leite simultaneamente) pode facilitar o acesso de recursos madeireiros regulamentados de forma mais sustentável, bem como planos de assistência social que facilitem o acesso ao gás de cozinha à comunidade. Buscar reduzir a pressão sobre certas famílias de espécies lenhosas nativas, principalmente de lauráceas, pode ser também uma alternativa.
Outro conjunto de medidas leva em conta o plantio de batatas, para o qual a população acabava queimando campos nativos alto-andinos. Por isso, há a necessidade de cessar essas queimas, principalmente a dos campos que possuem uma importante planta consumida pelos ursos: trata-se da Puya, uma espécie de bromélia terrestre alto-andina cuja ausência pode levar ao deslocamento dos ursos. A queima também pode causar o deslocamento de possíveis presas e a diminuição de habitats para o urso-andino.
Em um terceiro eixo de ação há a necessidade de melhorar o manejo do gado na região, com a adoção de medidas que diminuam a vulnerabilidade do rebanho por meio de assistência técnica, como evitar que o gado pasteje em áreas próximas aos bosques, trazer os rebanhos para áreas mais próximas da comunidade, entre outras opções indicadas no estudo.
Por fim, a indicação é priorizar todas essas medidas de controle e vigilância do gado na estação de estiagem, principalmente nos meses de julho e agosto, que é quando há uma menor disponibilidade de recurso nos bosques e os ursos tendem a buscar outras fontes de alimento.
De acordo com o professor do Departamento de Ecologia e Conservação do Instituto de Ciências Naturais (DEC/ICN/UFLA) e coordenador da pesquisa, Marcelo Passamani, o objetivo foi compreender o contexto ecológico para formular estratégias capazes de atenuar o conflito. “Para isso, buscamos analisar quais características melhor explicam o uso do habitat pelos ursos-andinos na região de conflito. Utilizando estratégias como armadilhas fotográficas espalhadas pela área, coletamos, entre maio de 2019 e novembro de 2020, sete variáveis: inclinação do terreno, cobertura florestal, ocorrência de bromélias Puya, abundância de gado, distância da vila, distância para trilhas e precipitação”, explica.
A pesquisa mapeou, dessa forma, as áreas focais com maior potencial para a predação de gado por ursos-andinos e as implicações para o manejo e a coexistência entre humanos e esses carnívoros. Com os resultados e as imagens coletadas, confirmou-se que, na verdade, era o gado que ia para as áreas mais utilizadas pelos ursos-andinos e não o contrário, causando impactos em áreas mais adequadas aos ursos e gerando o deslocamento da população desses animais.
“Os moradores necessitam de apoio técnico especializado para melhorar o manejo e a rentabilidade do gado, diminuindo os impactos sobre os ursos. Propomos para eles algumas ações. Medidas que conservem as florestas e bosques nativos com Puya para os ursos, bem como práticas de manejo de gado mais sustentáveis e rentáveis, podem ser priorizadas para reduzir o conflito entre humanos e ursos na região. Em outras palavras, propomos diminuir a pressão em cima da floresta e, especialmente, dos campos alto-andinos nativos”, revela o professor Passamani.
A iniciativa partiu dos moradores da vila, que, na tentativa de resolver o problema, buscaram o Servicio Nacional Forestal y de Fauna Silvestre (Serfor), que pode ser entendido, por exemplo, como uma versão do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Dessa forma, em 2019, a demanda levou ao convênio entre a UFLA e a UNCP, o que deu início à pesquisa. Todas as sugestões de solução apontadas pelos pesquisadores foram encaminhadas para o Serfor, na expectativa de que sejam implementadas.
Os pesquisadores ainda ressaltam que, ao longo dos Andes Tropicais, o conflito humano-urso é uma realidade em diversas localidades. Cada situação tem suas próprias características socioambientais e culturais, mas há a necessidade de que as medidas de manejo do conflito busquem o princípio da coexistência entre ambos os lados para que possam conviver de uma forma mais sustentável a longo prazo, principalmente, quando o conflito envolve comunidades tradicionais com alta vulnerabilidade socioeconômica, como a de S.P. de Churco, que está inserida no entorno de uma área protegida que impõe certas limitações em suas atividades econômicas.
Mais sobre o estudo e a equipe
A pesquisa foi o foco da dissertação de mestrado “Interação urso andino - ambiente em uma região de conflito nos Andes Centrais Peruanos: implicações de manejo e conservação da biodiversidade alto-andina”, defendida em 2021 pelo egresso do Programa de Pós-Graduação em Ecologia Aplicada da UFLA Mateus Melo-Dias, sob orientação do professor Passamani.
O estudo também resultou no artigo “Lighting up mountain coexistence: Understanding the effects of environment and livestock on habitat use by Andean bear in a conflict zone in Peruvian Andes” (“Iluminando a coexistência nas montanhas: Compreendendo os efeitos do ambiente e do gado no uso do habitat pelo urso-andino em uma zona de conflito nos Andes Peruanos”), que foi publicado em setembro de 2024 pela Journal for Nature Conservation.
Além de Mateus e Passamani, o artigo conta com a autoria de outros pesquisadores da UFLA, da UNCP, da Universidad Nacional Autónoma de Huanta e da Universidad César Vallejo: Jesenia F. A. Huatuco, Marco A. Arizapana-Almonacid, Marco I. Castañeda-Tinco e Fernán Chanamé.
Levantamento sobre mamíferos andinos
Por meio da metodologia utilizada para o levantamento das informações sobre os ursos-andinos, os pesquisadores estudaram também a biodiversidade do Santuário Nacional Pampa Hermosa (SNPH), que abriga uma das áreas prioritárias para conservação no Peru. Dessa forma, foi possível inventariar, pela primeira vez, os mamíferos de médio e grande porte da região alto-andina do SNPH e da zona ao seu entorno, registrando 11 espécies nativas e três espécies domésticas de mamíferos.
Dentre as espécies nativas, o veado-de-rabo-branco (Odocoileus virginianus) foi o que apresentou a maior frequência relativa. Ao todo, a riqueza da biodiversidade observada no local foi superior à da maioria dos levantamentos de mamíferos de médio e grande porte feitos na área de contato entre os ecossistemas de Puna (campos alto-andinos) e Selva no Peru. Os resultados demonstraram que mais de 90% das espécies registradas foram, de fato, encontradas no SNPH, confirmando que toda região alto-andina do Santuário e seu entorno tem um importante valor para a fauna de mamíferos local.
O artigo “Living at the top of the forest line: medium and large mammals in a high-mountain ecotone in Peruvian Central Andes” (“Vivendo no topo da linha de floresta: mamíferos de médio e grande porte em um ecótono de alta montanha nos Andes Centrais do Peru”) foi publicado em 2022 pela Biota Neotropica.
Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.
Apuração e Matéria: Claudinei Rezende. Revisão: Ana Eliza Alvim. Artes Gráficas: Nathália Martins. Imagens: Pexels, Maryse Rebaudo, Peter Woelfel, Arquivo pessoal - Pesquisadores.