Na indústria do curtimento de couro (curtume), o método mais utilizado para garantir maior resistência, durabilidade, elasticidade e as chamadas propriedades de estabilidade térmica e hidrotérmica da pele do animal é a aplicação do cromo 3. Esse metal permite a formação de uma superfície dura, de bom aspecto e resistente à corrosão. Além desse uso, o cromo 3 e seus compostos são utilizados na produção
de aços inoxidáveis e de outras ligas, como as usadas para fabricar resistências elétricas, no revestimento de peças decorativas, na fixação de cores na indústria têxtil e para endurecer o aço. Por causa da cor azulada que o cromo
3 impregna, o couro resultante desse processo recebe o nome de wet blue.

Como em muitos tratamentos químicos adotados em processos industriais, surgem alguns problemas no momento em que é preciso eliminar os resíduos. Estima-se que, na indústria de curtume, eles representem entre 10 e
30% da produção. A forma mais comum de eliminá-los é a construção de aterros. Porém, se colocado em contato com o solo, o cromo 3 presente nos resíduos sofre um processo de oxidação e se transforma em cromo 6. Essa outra forma é mais tóxica e altamente prejudicial à saúde. Entre os efeitos do cromo 6, ou hexavalente, no ser humano, estão o risco de corrosão dos tecidos, produção de dermatites em caso de contacto prolongado e, se houver inalação, órgãos como o fígado e os rins, além de todo o sistema digestivo, podem ser prejudicados. A legislação ambiental em vigor exige que os aterros sejam impermeáveis para que não contaminem o solo ou lençóis de água subterrâneos.

A dificuldade está no fato de que, para aterrar uma tonelada de resíduos, são gastos, em média, cerca de R$ 3 mil. Isso leva muitos produtores, principalmente os pequenos e médios, com menos recursos, a negligenciarem essas providências.

Atualmente, uma das alternativas estudadas para eliminar esses resíduos sólidos contaminados pelo cromo é a incineração. Esse método, assim como no caso dos aterros, acarreta impactos ambientais. Porém, dessa vez, é a atmosfera que sofre a contaminação. Cinzas provenientes da combustão do wet blue lançam o cromo 6 no ar. Para evitar prejuízos para o meio ambiente, seria necessária a retirada do cromo das cinzas por meio de filtros, o que, por outro lado, impediria o reaproveitamento do produto químico em outras reações. Portanto, a incineração não se mostra a alternativa mais viável, uma vez que o cromo é um metal relativamente raro na superfície terrestre (cerca de 0,03%) e, por isso, um produto caro para os proprietários de curtumes.

A Equipe do Laboratório de Química Ambiental da Universidade Federal de Lavras (Ufla), Luiz Carlos Alves de Oliveira, químico e professor, já pesquisava formas de retirar metais de resíduos sólidos desde seu mestrado. Apresentado ao problema do wet blue por um aluno do Rio Grande do Sul, em 2003, Oliveira decidiu concentrar suas atenções na pesquisa de soluções ambientais para esse resíduo. No mesmo ano, encontrou um método novo para separar o cromo do couro. Para isso, é utilizado um composto químico, que catalisa a reação. A composição dessa substância ainda não pode ser divulgada porque o processo encontra-se no período de sigilo para depósito de patente. É fato, porém, que, com seus estudos, Oliveira não apenas criou uma alternativa inteligente para um problema ambiental, como também trouxe inovação, a última etapa no processo de produção do conhecimento científico.

O método desenvolvido por Oliveira permite a retirada do cromo dos resíduos de couro e também evita o desperdício do metal ao possibilitar que ele seja reaproveitado em novas reações. Outra possibilidade detectada pela equipe do pesquisador é a produção de carvão ativado a partir do wet blue. Dessa forma, um resíduo antes inútil para a indústria de curtimento passa a ser uma saída para reduzir os gastos com a aquisição do carvão ativado.

Retira-se o cromo do resíduo de couro, por meio do agente catalisador descoberto pelo professor Luiz. Dessa reação, são formados dois produtos:
o cromo 3, pronto para ser utilizado novamente no tratamento do couro,
e o material livre de cromo, chamado mais freqüentemente de colágeno.

Para produzir o carvão ativado, o wet blue é acrescido, por exemplo, de zinco. Em seguida, por meio de um processo chamado pirólise, é queimado. Porém, diferentemente da incineração, essa reação acontece na ausência de oxigênio, usando o nitrogênio como gás de arraste. É realizado, também, um controle de temperatura, de forma que o produto dessa reação não são as cinzas com cromo 6, mas o carvão ativado.
A vantagem é que ele já está impregnado de cromo, o que é interessante para a indústria têxtil, por exemplo.

Café defeituoso e o carvão ativado granulado resultante da tecnologia empregada
Oliveira esclarece que a diferença entre o carvão de churrasqueira – mais conhecido – e o carvão ativado é que o carvão de churrasqueira é compacto, não tem poros. ‘Ativar o carvão significa criar poros, o que por sua vez aumenta a área de superfície’, conta. Para compreender melhor a diferença, ele faz uma analogia entre um tijolo vazado e um tijolo compacto, desses usados para revestimento. O vazado possui maior área superficial que o compacto. ‘Um grama de carvão ativado possui superfície maior que a de um estádio de futebol’, ilustra. O carvão ativado é um produto químico caro, usado por indústrias de todo o mundo. Uma de suas principais aplicações é a adsorção, ou seja, a retirada de resíduos, por exemplo, de tinta da água lançada em rios pela indústria têxtil.
O carvão produzido nos laboratórios da Ufla já foi testado para esse fim e mostrou resultados animadores.

Patente

Resíduo do couro deixa de ser problema para ser solução: carvão ativado tem alto valor agregado
Oliveira reconhece que, quando descobriu o catalisador capaz de purificar o wet blue, ficou inseguro quanto à originalidade de seu estudo. A solução de um problema tão antigo e de dimensões mundiais parecia tão simples que foi difícil para ele acreditar ser, de fato, o primeiro a pensar naquilo. Depois de pesquisar na literatura específica da área, decidiu iniciar o processo de pedido de patente e, para isso, procurou o Escritório de Gestão Tecnológica da FAPEMIG, responsável por orientar pesquisadores de todas as áreas do conhecimento sobre a proteção da propriedade intelectual. Ele registrou a tecnologia de retirada de cromo do resíduo de couro como inventor independente e a transferiu para a Vert Eco Tecnologias, empresa de base tecnológica do Instituto de Inovação, incubadora localizada em Belo Horizonte (MG).

A vantagem desse tipo de patente é que o pesquisador recebe 50% dos royalties obtidos com a comercialização do produto final. Já a tecnologia de transformação do couro limpo em carvão ativado é uma patente conjunta entre a FAPEMIG e Ufla. Ela ainda não entrou em fase de testes e pesquisas de mercado, mas, nesse caso, cada uma das partes recebe 33% dos royalties. Oliveira afirma que, em ambas as situações, ele se considera o maior beneficiado. ‘Com uma patente registrada, fica muito mais fácil aprovar projetos em órgãos de fomento como o CNPq e a própria FAPEMIG. Essas patentes, de fato, já resultaram em retorno para minhas pesquisas, como a obtenção de bolsas para alunos financiadas pelo Instituto de Inovação’, explica.

No momento, a Vert Eco Tecnologias elabora, junto com os pesquisadores, uma estratégia para levar a tecnologia de purificação do wet blue aos curtumes da forma mais eficiente. Para garantir que o segredo da descoberta seja mantido, não é possível fornecer ao produtor de couro um kit com o catalisador e instruções de uso. Assim, até o momento, o mais adequado parece ser montar uma unidade central com o papel de tratar os resíduos vindos de curtumes de todo o Estado. No momento, o tratamento para o wet blue já foi testado em escala piloto e a obtenção de financiamento para realizar esse tratamento em escala industrial é o mais recente desafio de Oliveira e sua equipe.

Outras aplicações

Professor Luiz Carlos Alves de Oliveira, coordenador da pesquisa
‘O colágeno (couro livre de cromo) ou o couro ainda virgem de qualquer beneficiamento químico é pura proteína e fonte de aminoácidos e nitrogênio’, explica Oliveira. Por isso, em geral, a proteína do couro pode ser usada para produzir material fotográfico, adubo, ração animal, gelatina para a indústria alimentícia e produtos da indústria de cosméticos. Mas, segundo o professor, ‘a maioria dos empresários não investe em peso nessas outras aplicações, pois o couro propriamente dito continua possuindo um valor muito superior no mercado se usado em calçados, bolsas, roupas e acessórios’.

Mesmo assim, em busca de um produto agregado de valor científico, que possa representar uma efetiva inovação no mercado, os departamentos de Química e Veterinária da Ufla se uniram em um projeto para o desenvolvimento de uma ração animal a partir do colágeno.
‘A legislação vigente proíbe a fabricação
de rações a partir de fontes animais, com exceção do couro e do leite’, explica o professor Mário César Guerreiro, que integra a equipe do professor Oliveira. Ele acredita que é exatamente essa ressalva que representa uma abertura para inserir no mercado a ração a partir do colágeno de couro bovino.

Ainda inserido no contexto da inovação tecnológica, com vistas a reaproveitar resíduos transformando-os em materiais com alto valor agregado, Oliveira e seu grupo de pesquisa trabalham no tratamento de resíduos do café. Uma das aplicações possíveis envolve o aproveitamento de grãos defeituosos. ‘O Brasil produz, anualmente, 30 milhões de sacas de café, das quais dois milhões possuem os chamados defeitos PVA, sigla para designar os defeitos mais comuns (preto, verde e ardido)’, conta Oliveira. Os grãos pretos são aqueles que tiveram o processo de formação interrompido, os verdes, que não atingiram o ponto de maturação e os ardidos, grãos bons que sofreram fermentação. Nenhum dos três tipos pode ser colocado junto dos grãos sadios, pois comprometeria a qualidade do produto final, a chamada ‘pureza’ do café, pré-requisito para a exportação. Além disso, é grande a quantidade de cascas de café produzida. Esse resíduo pode ser reaproveitado em pequenas medidas, mas ainda de forma problemática. Se usadas como adubo, as cascas tornam o solo ácido. Já para a alimentação (produção de ração animal), os taninos presentes agem como fatores antinutricionais, impedindo a digestão de certos nutrientes quando se ligam a eles.

Utilizando o mesmo método desenvolvido para a transformação de wet blue, os professores Luiz de Oliveira e Mário Guerreiro desenvolveram, juntos, dois outros tipos de carvão ativado. Um à base das cascas do café e outro a partir de grãos defeituosos (carvão granulado). Esse é mais um pedido de patente conjunto entre FAPEMIG e Ufla. Além disso, o vapor gerado por meio do aquecimento controlado desses resíduos antes não-aproveitáveis permite recolher substâncias como a cafeína e o óleo essencial do café, o que garante o aroma tão apreciado pelas pessoas e tão cobiçado pela indústria alimentícia. Para a economia, essa inovação poderia representar, também, uma alternativa para a regulação do mercado. Em caso de supersafra, situação em que o valor do grão no mercado fica baixo, é possível retirar o chamado bom café do mercado e usá-lo para essas outras finalidades, o que já acontece, de forma semelhante, com o açúcar e o álcool.

Diretrizes para publicação de notícias de pesquisa no Portal da UFLA e Portal da Ciência

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