Você se lembra das aulas de Português em que a professora ensinava a usar pronomes e sinônimos para evitar repetições desnecessárias? Essas referenciações, além de impedirem a utilização excessiva de uma expressão, também podem ser usadas para expor opiniões ou julgamentos. Por exemplo, na manchete “Para roubar anel de brilhante; larápio esfaqueia a vítima”, o vocábulo “larápio” referencia a ação de roubo, mas também expressa um julgamento pejorativo por parte de quem escreveu a matéria em relação à pessoa que cometeu o delito. Caso fosse o objetivo comunicativo do redator, “larápio” poderia ser substituído por “homem”, “viciado” ou até mesmo “necessitado”, produzindo efeitos de sentido diferentes. Uma pesquisa da Universidade Federal de Lavras (UFLA) investigou como esse fenômeno, chamado de referenciação, ocorre em charges animadas.
O estudo concluiu que a referenciação nesse gênero textual é feita por meio de recursos verbais, sonoros e visuais. Na charge analisada, essas remissões contribuíram para a construção da argumentação, realização de críticas sociais, produção de efeitos de humor e direcionamento interpretativo. Além disso, o estudo sugere que os materiais didáticos utilizados nos ambientes educacionais para análises linguísticas e semióticas devem incluir diferentes produções textuais, que não se limitam à linguagem verbal. Desse modo, o aprendizado poderá se tornar mais interessante para os estudantes, pois esses textos apresentam um formato dinâmico e envolvente.
As pesquisadoras Jaciluz Dias, Taísa Rita Ragi, Helena Maria Ferreira e Camila da Silva Bezerra, ao analisarem a charge “É uma droga”, de Maurício Ricardo, perceberam que, além de os referentes serem construídos por meio de recursos verbais, sonoros e visuais, determinados termos, como “cadastro” e “CPF”, eram retomados e ressignificados ao longo da narrativa.
Antes mesmo de o diálogo entre os personagens começar, como apontam as pesquisadoras, é criado um ambiente que permite a identificação do espaço representado. Nele, visualizam-se prateleiras de medicamentos, cartazes promocionais de produtos medicinais e um computador que funciona como máquina registradora. Todo o ambiente remonta, com tom humorístico, a uma farmácia.
De diferentes maneiras, o autor da produção ilustra a intensificação da irritação do personagem que quer comprar um remédio: aumentando o tom de voz, usando gestos que demonstram tensão e nervosismo (movimentos dos ombros, mãos cerradas, arqueamento das sobrancelhas), empregando um termo grosseiro como reclamação e, ainda, avermelhando a testa dele como sinal de raiva. De acordo com as pesquisadoras, cada um desses recursos referencia e ressignifica o estado de irritação do senhor de meia-idade.
A narrativa termina com uma ambulância parada à frente da farmácia onde toda a história aconteceu. Só se ouve a conversa dos socorristas com o protagonista e a atendente. As pesquisadoras afirmam que, como a ambulância impede que o público veja os personagens, a voz assume o papel de referência sonora. Isso porque é a única forma de quem assiste à charge animada reconhecer quem fala na última cena, mesmo sem vê-los. Essa retomada se dá por meio da rememoração do tom e do timbre de voz de cada um dos dois personagens que já haviam sido apresentados: o personagem que quer comprar um remédio e a atendente.
A charge faz uma crítica, de forma cômica, à exigência de cadastro para a obtenção de descontos em estabelecimentos farmacêuticos. Com este estudo, as pesquisadoras demonstram que os diferentes recursos utilizados para a construção da referenciação em charges animadas constituem-se em uma estratégia discursiva de relevância para a proposição de críticas sociais, defesa de posicionamentos e produção de efeitos de humor.
O trabalho completo está disponível no capítulo “A referenciação em textos multissemióticos: uma análise de uma charge animada”, publicado na obra "A Linguística na escola básica”, pela Editora Diálogos.
Esse conteúdo de popularização da ciência foi produzido com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - Fapemig.
Escrito por: Pedro Henrique Cardoso