Aos 12 anos de idade, a vida de Lara Vitória Nascimento foi ameaçada por uma doença grave, que pode resultar em morte quando não tratada adequadamente: a leishmaniose visceral. Em dezembro de 2016, a jovem, que é diabética, brincava em casa no bairro Morada do Sol II, no município de Lavras/MG, quando teve as férias escolares interrompidas por uma febre alta e fortes dores no abdômen.
Durante 20 dias, Lara e seus pais, Hivania Adriana Ferreira e Adalton Robson do Nascimento, viveram uma saga na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da cidade até os médicos diagnosticarem e medicarem corretamente a doença.A mãe explica que a dificuldade no diagnóstico ocorreu porque os sintomas coincidiam com os de várias outras doenças. “Os médicos sabiam que ela tinha alguma infecção, mas não sabiam qual era. Vivemos semanas de muito medo, até eles detectarem a leishmaniose. O remédio ainda demorou dois dias para chegar de Belo Horizonte”, relembrou. Depois de identificada a doença, a jovem ainda ficou internada por 13 dias na Santa Casa de Misericórdia. O quadro clínico da jovem era agravado pela diabetes. “O remédio fazia subir a glicose dela”, diz Hivânia.
Hoje, Lara está curada. Hoje, Lara está curada. Na vizinhança da família, outras pessoas também desenvolveram leishmaniose, dos tipos visceral e tegumentar. Expandindo para o contexto nacional, os números mostram que, em 2016, o Brasil registrou 3200 casos de leishmaniose visceral humana e 12.690 de leishmaniose tegumentar. No total, foram 265 mortes em decorrência dessas doenças, que são consideradas endêmicas da população, sobretudo a de baixa renda. Porém, como um inseto é o principal transmissor, e os cães são os reservatórios mais frequentes do parasito do gênero Leishmania, toda a comunidade acaba sendo exposta aos riscos, e deve estar envolvida com as medidas de controle e prevenção.
Para evitar um cenário de epidemia, as pesquisas científicas assumem papel estratégico. Projetos desenvolvidos pelo Laboratório de Biologia Parasitária (Biopar/UFLA) buscam identificar o panorama das leishmanioses em municípios e, assim, fornecer subsídios para que o Ministério da Saúde e as Vigilâncias Epidemiológicas e Ambientais possam atuar no controle e na prevenção. Trata-se de inquéritos epidemiológicos, ou seja, estudos que revelam a situação de ocorrência da doença: presença de agentes transmissores e hospedeiros, concentração desses agentes por região da cidade, espécies de insetos encontradas, casos humanos registrados, entre outros fatores relevantes.
Um novo foco de atuação
Município de Ribeirão Vermelho tem inseto transmissor em grande concentração
Se boa parte dos estudos sobre leishmanioses da UFLA vinha sendo desenvolvida no município de Lavras, a pesquisa iniciada pela estudante de pós-graduação em Medicina Veterinária Ingrid Marciano Alvarenga avança para uma comunidade vizinha: a de Ribeirão Vermelho, cidade de pouco mais de 3,8 mil habitantes, situada a cerca de 13 quilômetros de Universidade. Os dados apurados até o momento no local despertam atenção, porque revelam alta incidência do mosquito-palha, além de cães com resultado positivo para a doença.
O inquérito epidemiológico no município foi iniciado em fevereiro de 2018 por Ingrid e pelo estudante de pós-graduação em Ciências da Saúde, Anderson Davi Moreira. Nesse período, mobilização realizada no município levou à identificação de sete cães infectados. De acordo com a pesquisadora, o fato de esses cães nunca terem saído da cidade indica que contraíram o parasito lá mesmo. O outro motivo para preocupação foi justamente a constatação da presença do inseto transmissor no município. “Temos em Ribeirão Vermelho as duas condições que favorecem a disseminação da leishmaniose. Por isso, estamos investigando o estado epidemiológico em que o município se encontra”, explica.
O estudo de Ingrid envolve as seguintes etapas: com a ajuda da Vigilância Epidemiológica de Ribeirão Vermelho, ela iniciou a coleta de insetos em 14 residências para identificar se há presença do mosquito-palha e qual é a sua concentração. Essa coleta ocorre com a colocação de armadilhas luminosas nas casas. Uma vez por mês, Ingrid vai às residências, instala as armadilhas e as deixa no local por três dias. Essa rotina vai se repetir mensalmente por um ano. Todos os insetos capturados pelas armadilhas são levados ao Biopar/UFLA, onde passam pela triagem: são identificados, por análise visual, quais são os flebotomíneos (insetos vetores das leishmanioses). Também por observação visual, com o auxílio de lupas, são separados flebotomíneos machos e flebotomíneos fêmeas (processo chamado sexagem). Como é a fêmea do inseto que se alimenta de sangue, é ela a responsável pela transmissão do parasito.
Na etapa seguinte, as fêmeas coletadas são dissecadas e seus intestinos submetidos à análise molecular para pesquisa de DNA de Leishmania pela técnica de PCR; ou seja, o procedimento permite identificar se o parasito está presente no inseto. Adicionalmente, as demais partes do corpo das fêmeas são montadas em lâmina de vidro, para identificação específica por microscopia óptica. Analisando cada estrutura, os pesquisadores são capazes de identificar a qual espécie o flebotomíneo pertence, o que é essencial para definição do perfil epidemiológico das leishmanioses no município. Os machos dos flebotomíneos - que só se alimentam de seiva e, portanto, não se infectam com o parasito – também são dissecados e montados em lâminas de vidro para identificação da espécie. O material em lâmina é incluído na coleção de espécies de referência do município, mantidas no Laboratório de Biologia Parasitária, para serem utilizados em aulas, projetos de extensão, etc.
Os resultados de todo esse trabalho de mapeamento da situação da doença no município é que vão permitir o planejamento adequado junto à Secretaria Municipal de Saúde de medidas de controle e prevenção da doença.
Em uma única coleta de três noites em 14 residências de Ribeirão Vermelho, Ingrid identificou 109 mosquitos-palha, de seis espécies diferentes. A mais prevalente foi Lutzomyia longipalpis, principal responsável no Brasil pela transmissão de Leishmania infantum, o parasito causador de leishmaniose visceral. Quanto às demais espécies identificadas, não há confirmação de que transmitam esse tipo específico da doença, mas possuem importância no ciclo de transmissão das espécies causadoras de leishmaniose tegumentar. De acordo com a professora Joziana, o número já encontrado na 1ª de 12ª coletas da pesquisa aponta para a necessidade de continuidade do trabalho e imediata orientação dos profissionais de saúde sobre os sinais e sintomas relacionados às leishmanioses. “Um diagnóstico rápido é essencial para o sucesso do tratamento da doença. Além disso, é premente a realização de campanhas de educação em saúde junto à população, a fim de orientar sobre as medidas de prevenção e controle, com o objetivo de evitar a ocorrência de casos humanos da doença, e também evitar uma elevada prevalência da doença em cães”, avalia.
Em Lavras, estudo se estrutura a partir de casos humanos da doença
Município já registrou duas mortes por Leishmaniose Visceral
Com seis casos confirmados de leishmaniose visceral, o município de Lavras, onde está localizada a Universidade, vem sendo alcançado por ações de pesquisa e extensão desde 2013. Uma dessas ações é a pesquisa do doutorando Thiago Pasqua Narciso. Ele busca identificar o conjunto de fatores que fazem parte do ambiente em que residiam os seis pacientes que apresentaram a doença. Um dos procedimentos de pesquisa é semelhante àquele feito por Ingrid – o monitoramento da presença do flebotomíneo na residência dos pacientes por meio de armadilhas luminosas. Uma diferença nesse procedimento é que o estudo de Thiago inclui uma etapa a mais no momento de analisar os flebotomíneos: além de testes para saber se as fêmeas estão infectadas com o parasito, serão feitos exames para identificar a espécie a que o parasito pertence. “É uma informação importante, porque há várias espécies diferentes do gênero Leishmania, e elas são responsáveis por tipos diferentes da doença, que pode ser tegumentar ou visceral”, explica Thiago.
A coleta de insetos nesse estudo também se estende para além das residências. Armadilhas do tipo Shannon são colocadas em áreas de mata localizadas próximas às residências dos pacientes. Esse método de captura dos insetos exige a presença do pesquisador no local, pois é feito manualmente. No caso da pesquisa de Thiago, serão 20 armadilhas instaladas, contemplando períodos das quatro estações do ano. São coletas realizadas sempre à noite, entre 17h30 e 21h. O pesquisador pretende, ainda, enriquecer o acervo de dados a serem obtidos, incluindo outro objeto de estudos: os roedores. “Até o momento, os cães são considerados os reservatórios mais importantes do parasito, mas qualquer mamífero pode estar infectado; espécies do gênero Leishmania já foram identificadas em roedores. Por isso é importante avaliarmos esse animal também. Vamos fazer capturas nas regiões de mata próximas às residências onde houve casos humanos. Em seguida, realizaremos exames parasitológicos e moleculares nesses roedores. A ideia é avaliar a possibilidade de termos um reservatório silvestre interferindo no quadro da doença no município”, diz.
Ao final do trabalho, Thiago irá disponibilizar os resultados por meio de georreferenciamento, construindo o mapa da leishmaniose visceral em Lavras, localizando a incidências de casos caninos e humanos, além da ocorrência do vetor de transmissão. É um trabalho longo, que busca oferecer condições para que o poder público e os cidadãos possam atuar e evitar outros casos da leishmaniose visceral, como aquele que impactou a vida da família de Lara e a faz reconhecer a importância dos estudos. “Sinto muita gratidão pela vida da minha filha. A equipe da UFLA sempre me dá retorno sobre a situação dos mosquitos na região. Seguimos as recomendações de manter o quintal sempre limpo, paramos de criar galinhas, vigiamos os cachorros e aplicamos repelente em todos da família”, conta a mãe.
Rumo ao futuro: atuação multidisciplinar para prever incidência de casos e prevenir
A professora do Departamento de Ciências da Saúde Joziana Muniz de Paiva Barçante, que coordena e orienta na UFLA as pesquisas e ações relacionadas à doença, avalia que esses dois estudos, conjugados a outros vários em desenvolvimento na Instituição, são essenciais à prevenção e controle das leishmanioses. “Estamos trabalhando para que os resultados das pesquisas da área da saúde possam ser conjugados a soluções tecnológicas desenvolvidas por outras áreas do conhecimentos, de forma a gerarmos um conteúdo essencial à saúde pública. Já estamos iniciando uma parceria com a professora Angélica Souza da Mata, do Departamento de Física (DFI/UFLA), para a criação de modelos matemáticos, que permitirão prever, com base nos dados de nossas pesquisas, como podem ser as ocorrências futuras da doença no município. Será um passo importantíssimo para a prevenção, avalia.
Para entender um pouco mais
Se a presença do flebotomíneo é relativamente frequente em um dado local, por que as leishmanioses não se manifestam em um número maior de pessoas, como ocorre com a dengue, por exemplo?
As leishmanioses não são causadas por vírus ou bactérias, mas sim por protozoários. Esse fato faz com que o período de incubação seja bem maior, podendo chegar a até dois anos. E, historicamente, os caninos são diagnosticados mais precocemente que os casos humanos. Então, é possível que o aparecimento de vários casos em cães seja o indício de manifestações futuras em humanos. Além disso, é possível que uma pessoa esteja infectada com o parasito, mas devido à boa condição do sistema imunológico, não desenvolve a doença, permanecendo apenas como portadora, mesmo sem saber ou mesmo apresentando cura espontânea.
Por que leishmanioses, no plural?
Porque há mais de um tipo de leishmaniose:
- Tegumentar, que pode ainda se subdividir em mucocutânea, cutânea difusa, cutânea disseminada ou ainda cutânea localizada, que é a forma mais comum, conhecida também como “ferida brava” ou “úlcera de Bauru”. São feridas indolores mais arredondadas, com borda elevada e região central mais úmida e avermelhada. Porém, na maioria das vezes, não leva à morte.
- Visceral ou calazar: é uma doença sistêmica, pois alcança vários órgãos internos, principalmente o fígado, o baço e a medula óssea. É a forma mais grave, que tem início com um quadro febril persistente, seguido de anemia, leucopenia, trombocitopenia, aumento do fígado e do baço e pode evoluir de forma rápida e chegar a provocar a morte.
Por que o cão é considerado um reservatório da leishmaniose visceral, e o homem não, mesmo que esteja infectado?
- O cão é considerado o reservatório principal da doença no meio urbano porque, quando infectado, tem o parasito na pele. Se é picado pelo inseto, a transmissão pode ocorrer. Já nos humanos o parasito infecta as vísceras, órgãos mais internos, o que dificulta a transmissão entre pessoas por meio do inseto.
Quem deseja saber mais sobre leishmanioses e outras pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal de Lavras (UFLA), acesse aqui a nova revista de jornalismo científico da universidade, Ciência em Prosa.
Reportagem: Ana Eliza Alvim, jornalista
Roteiro e edição do vídeo: Ana Carolina Rocha e Rafael de Paiva, estagiários Dcom/UFLA