Débora C. Carvalho
Professora de Sociologia da UFLA, atua na análise dos efeitos da expansão do Complexo Industrial Militar Estadunidense no sistema internacional e na formação de Estados Beligerantes
A emergência de uma guerra em pleno século XXI espanta apenas a quem, por um motivo ou outro, ainda não constatou que a barbárie não foi eliminada do processo histórico. A guerra – uma das formas mais brutais de manifestação da barbárie – atinge com gigantesco poder de aniquilação o cidadão comum, despojando-o de seus direitos mínimos, expondo-o à possibilidade de destruição violenta, além de disseminar terror e intenso sofrimento, como verificado nos campos de concentração e nos assentamentos de refugiados. Assim sendo, qualquer forma de guerra requer sempre firme oposição. Isso quer dizer: não é possível aceitarmos algumas e condenarmos outras. Guerras são, em sua esmagadora maioria, insensatas e injustas. Nesse sentido, a atual guerra entre Rússia e Ucrânia exige que tomemos partido contra ela.
Tomar partido requer, antes, o exame das motivações e dos comportamentos dos agentes ou países nela envolvidos; demanda também uma análise histórica do conflito a fim de se apontar, por um lado, a sua irracionalidade e, por outro, desconstruir o argumento de sua inevitabilidade. Nessa perspectiva, cabe salientar que o conflito entre Ucrânia e Rússia não é recente.
Ele se acentuou no século XXI, sobretudo após 2014, ano em que teria ocorrido ou um golpe de Estado - como sustentam muitos analistas – ou uma intervenção ocidental no processo eleitoral ucraniano com o objetivo de se eliminar daquele país o governo pró-Rússia até então dominante e, em seu lugar, instaurar um governo favorável aos EUA e ao mundo ocidental.
Esse fato gerou consequências duradouras, sendo determinante para a eclosão do atual conflito, já que provocou a rebelião separatista de duas províncias ucranianas - Donetsk e Lugansk - contra o novo governo, que não deixou de atacá-las militarmente. Desde então o cenário para a eclosão da guerra se configurou: o conflito fora anunciado. Ainda que iminente, todos os países envolvidos continuaram a agir de modo a agravar a tensão regional e, sobretudo, a existente entre ucranianos e russos. Bem assim, entre russos e mundo ocidental.
O governo ucraniano, por exemplo, incentivado pelos EUA, insiste em agir com o objetivo de se tornar membro da OTAN, muito embora tal ambição represente uma “ameaça existencial” para a Rússia, já que tal integração implicaria na instalação de mísseis no território ucraniano. Para se entender melhor a situação: imaginemos que a Rússia revivesse o extinto Pacto de Varsóvia e nele integrasse o México ou o Canadá: certamente a oposição dos Estados Unidos a essa tentativa seria tão ou mais drástica do que a adotada agora pela Rússia.
Aliás, tensão semelhante já ocorreu no início da década de 1960 quando a Rússia quis instalar mísseis em Cuba, fato que provocou enorme reação dos EUA. Além disso, ainda que uma análise de conjuntura aponte para a derrota do governo ucraniano, observa-se o interesse na manutenção da resistência e da guerra. Se, de uma parte, a permanência do conflito aumenta a tragédia humana, de outra, promove um desgaste sem precedentes ao país vizinho, a ponto de torná-lo um pária internacional, e permite também o aparecimento na sociedade russa de forte oposição a Putin.
A Rússia, por outro lado, também rechaçou a solução racional ou diplomática, preferindo a opção militar para resolver o conflito: ela desprezou objetivamente a possibilidade de negociar tanto com a Ucrânia quanto com os EUA e iniciou uma guerra que, se pode ter um desfecho no curto prazo, certamente terá consequências desastrosas no longo prazo, inclusive com a provável promoção de nova corrida armamentista – ou seja, de mais barbárie no horizonte, para dizer o mínimo.
Os EUA, por sua vez, realizam desde o início do século XXI uma política internacional de agressão a outros povos e de desestabilização de equilíbrios regionais, cujo maior exemplo é dado pela guerra movida contra o Iraque, que teve como objetivo central controlar o acesso à torneira global do petróleo. Ele também agiu com o objetivo de se tornar a única potência mundial após o fim da URSS. Paul Wolfowitz, um dos “falcões” da era Bush, inclusive, elaborou um projeto estratégico a fim de estabelecer o que denominou de “novo século americano”. O plano previa a consolidação da hegemonia estadunidense em âmbito global, por meio da expansão das atividades de sua indústria bélica, hoje enormemente ampliada. Dessa pretensão resulta o acirramento da disputa internacional com a China – uma nova versão da Guerra Fria? -, além da necessidade de isolar e enfraquecer a Rússia.
Ademais, embora se classifique atualmente o mundo como multipolar, as diretrizes econômicas predominantes são todas ocidentais. Sendo assim, a categoria da multipolaridade nos parece um tanto paradoxal e incapaz de abarcar a realidade político-econômica internacional. É inquestionável que os EUA atuaram historicamente para não perder a condição de país hegemônico. Parte da estratégia utilizada esteve assentada nos crescentes investimentos destinados ao Complexo Industrial Militar estadunidense e na escalada armamentista, que se assistiu após a dissolução do bloco soviético: outro paradoxo? Certamente, não para os EUA.
Talvez resulte dessa postura a acusação de que Putin pretenderia reconstruir a extinta URSS ou o império russo - acusação que serviu (serve ainda) ao país para expandir continuamente a OTAN em direção ao leste, por conseguinte, em direção à Rússia. Ingênuo imaginar que tal estratégia seria promotora de paz e de segurança, sobretudo, se confrontada com a escalada da tensão na região. O resultado histórico dessa “guerra fria” não poderia ser outro senão o da eclosão da guerra, a qual serve diretamente aos interesses estadunidenses.
Resta examinar o comportamento de outro agente no conflito, a saber, a Europa. Se, por um lado, as sanções impostas à Rússia pelos EUA pretendiam enfraquecer e abalar o prestígio e a influência da Rússia na Europa, por meio da diminuição de suas exportações de gás e de petróleo, por outro, almejavam também favorecer a influência estadunidense sobre a Europa, inclusive, por meio do aumento das exportações de petróleo. Relativamente às sanções aplicadas à Rússia, a maioria dos países membros da União Europeia não as acataram integralmente, tampouco, aceitaram passar a ser dependentes da fonte energética proveniente dos EUA. Muitos deles preferiram editar suas próprias medidas sancionatórias e, ao mesmo tempo, manter negócios com a Rússia. Noutro giro, colocaram em curso uma política humanitária para o acolhimento massivo dos ucranianos, cujo efeito ainda não foi sopesado pela maioria dos analistas políticos: estaria a Europa buscando, ainda que discretamente, reduzir a influência e o controle dos EUA no continente? Se assim for, estaríamos assistindo ao assentamento das bases para a emergência de uma nova ordem global, na qual a Europa lograria aumentar seu protagonismo? Embora seja prematuro redesenhar a hegemonia internacional, não o é apontar atores importantes tais como a China, Rússia e Europa.
Por fim, a análise isenta do conflito demonstra que os atores nele envolvidos tiveram outras opções, além da que culminou no confronto. Nessa perspectiva, a guerra seria completamente desnecessária.
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