O cenário é de montanhas íngremes e solo de baixa fertilidade. A luz do sol alcança as rochas e a vegetação arbustiva, criando um mosaico de sombras e claridade. Esse é o campo rupestre, um ecossistema único, de grande biodiversidade, que enfrenta risco de extinção. Duas gramíneas nativas, chamadas cientificamente de Axonopus siccus e Eragrostis polytricha, travam ali a batalha pela sobrevivência.
Caso as ameaças a essas plantas saiam vencedoras, e as espécies entrem em risco de desaparecimento, uma saída possível é que novas mudas sejam produzidas em laboratório para serem reintroduzidas no ecossistema. Mas não havia informações científicas suficientes para permitir essa produção de mudas. Atentos a esse cenário, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em parceria com outro pesquisador, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), uniram-se na missão de gerar esses conhecimentos. “Conhecer o funcionamento das plantas é o passo inicial para conseguirmos preservá-las para o futuro”, conta o líder do estudo e professor da UFLA Vítor Nascimento.
De acordo com as pesquisas do grupo, cada uma das duas espécies têm estratégias próprias para lidar com a escassez de luz. Apesar de compartilharem o mesmo habitat, respondem de maneiras muito diferentes ao sombreamento. E os conhecimentos obtidos com o estudo fortalecem a ciência básica sobre o tema e abrem caminhos para pesquisas aplicadas.
O estudo foi publicado na revista internacional Flora, relevante por ser a publicação da área de Botânica que está há mais tempo em atividade. Foram avaliados o crescimento das gramíneas, nutrição, fotossíntese, anatomia foliar e metabolismo.
Ecossistema de luz e sombra
O campo rupestre é um lugar de contrastes. Durante o dia, o sol forte incide sobre as rochas, mas a vegetação arbustiva, a topografia irregular e as alterações sazonais de luminosidade criam microhabitats onde a luz é escassa. É nesse cenário que Axonopus siccus e Eragrostis polytricha desempenham seus papéis.
De acordo com o estudo realizado na UFLA, A. siccus, uma gramínea robusta e resistente, não sofre tanto com a falta de luz. Ela aposta na modificação da anatomia de suas folhas para otimizar o uso da luz disponível. Mas mantém sua forma e estrutura, indicando que está preparada para a condição de sombreamento. Já E. polytricha, mais sensível e adaptável, usa a estratégia de esticar-se em direção à luz, crescendo mais alta e ajustando sua anatomia para capturar cada fóton disponível.
Em busca da sobrevivência
A pesquisa sugere que a Eragrostis polytricha adota uma estratégia conhecida como "síndrome de evitação do sombreamento". Em condições de pouca luz, ela cresce mais rapidamente, aumentando sua altura para alcançar a luz do sol. Além disso, suas folhas ficam mais finas e ricas em clorofila, otimizando a fotossíntese mesmo em ambientes sombreados. Já a Axonopus siccus, em vez de se esticar, investe em sua capacidade de manter a fotossíntese mesmo com menos luz. Seus níveis de clorofila aumentam, mas sua estrutura geral permanece quase inalterada. Ela mostra maior resistência para ambientes sombreados.
O metabolismo
O estudo também revelou como o metabolismo dessas plantas é afetado pela luminosidade. E. polytricha, em sua busca por luz, consome mais energia, o que se reflete em uma redução nos níveis de açúcares solúveis e sacarose. Já A. siccus mantém um equilíbrio mais estável, conservando seus recursos para tempos difíceis. "Essas plantas, que vivem no mesmo ambiente, desenvolveram estratégias bem diferentes para lidar com o mesmo desafio", comenta o professor Vitor. "Isso mostra que a natureza encontra múltiplas soluções para os mesmos problemas. O funcionamento das plantas não é universal, por isso precisamos entender cada espécie"
Um ecossistema em risco
O campo rupestre está sob ameaça. A mineração, a expansão agrícola e as mudanças climáticas impactam sobre esses habitats determinantes para essas e outras espécies. Compreender como as plantas se adaptam às mudanças ambientais é essencial para planejar estratégias de conservação e restauração.
Três biomas principais abrigam campos rupestres no Brasil: Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga. É o caso de regiões conhecidas como a Serra da Mantiqueira, a Chapada dos Veadeiros, a Serra dos órgãos, a Serra da Canastra, e outras tantas, como a Serra de São José, em Tiradentes, a 103 quilômetros de Lavras (MG).
Um objeto de estudos que veio para ficar
Os experimentos foram realizados na área experimental do Setor de Fisiologia Vegetal do Instituto de Ciências Naturais da UFLA, e replicados em dois ciclos: de outubro a dezembro de 2021 e de abril a junho de 2022.
O estudo faz parte das atividades do Grupo de Pesquisa Fisiologia do Estresse e Produção de Plantas e foi desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Fisiologia Vegetal e Botânica Aplicada.
O professor Vítor, coordenador do Grupo, celebra os resultados, que foram frutos da dissertação de mestrado da pesquisadora Eduarda Andrade, sua primeira orientação no Programa. “Foi um ótimo início para uma trajetória que está apenas começando. Nossa meta é trabalhar com a compreensão desse modo de funcionamento das plantas, tanto com espécies nativas quanto cultivadas. É um conhecimento básico importante para subsidiar uma série de outros estudos”, diz.
Para mais informações:
O artigo completo, intitulado "Distinct morphophysiological responses of the native C4 grasses Axonopus siccus and Eragrostis polytricha to shading", está disponível na revista Flora (doi: 10.1016/j.flora.2024.152621). Além do professor Vítor e da pesquisadora Eduarda Andrade, integram o grupo os pesquisadores da UFLA Beatriz Souza, Eduardo Pereira Costa, Hugo Bonezio, Mewael Kiros Assefa, Marinês Ferreira Pires-Lira e Paulo Eduardo Ribeiro Marchiori. Também participou o pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais (IFMG), câmpus Ouro Branco, Leandro E. Morais.