Se, há poucos anos atrás, assumir os cachos e o cabelo crespo era algo raro no Brasil, hoje a população afrodescendente tem valorizado cada vez mais, e de várias formas, sua identidade. Usam os cabelos naturais no estilo black power, à moda da ativista do movimento feminismo negro Angela Davis, soltos e longos, com dreadlocks, tranças afro, repicados. De um lado, as mulheres estão abandonando os fios lisos à base de relaxamento, chapinha ou escova. Do outro, os homens superam a tendência de raspar o cabelo para se livrar do “problema” dos fios crespos. Um movimento social, político e econômico marca diferença nesse cenário: trata-se do surgimento e fortalecimento dos salões étnicos.
O fenômeno é tema da dissertação da pesquisadora Ana Flávia Rezende, mestre pelo programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA/UFLA), da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FCSA). Coordenado pela professora Flávia Mafra, o estudo buscou identificar como os empreendedores negros do ramo resistem à lógica da subalternidade colonialista que estrutura a sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que contribuem para a construção da identidade racial e a valorização da estética negra no País.
Três empresárias e dois homens negros, que dirigem salões étnicos em Belo Horizonte (MG), voltados para cabelos de negros e pretos, contaram, por meio de entrevistas, seus casos de sucesso no mercado de cabelo afro. A pesquisa de campo permitiu colher narrativas que, após passarem por um processo de sínteses e análises, mostraram que os empreendedores precisam enfrentar frequentemente questões características da colonialidade, como o preconceito e o racismo. São narradas situações que vão desde a dificuldade do negro em alugar um espaço para o salão étnico, devido ao fato de a imobiliária exigir dos locatários mais fiadores do que normalmente pede ao empreendedor branco, até a ausência de produtos no mercado para cabelo negro, sob alegação de que o público não tem renda para consumi-los. Ter um negócio afro não protege esses empreendedores, mas o empreendimento configura-se como mais uma forma de os negros resistirem e sobreviverem, desde a escravidão.
O carro-chefe dos empreendimentos vai da prestação de serviços especializados para os cuidados com o cabelo cacheado e crespo à venda de produtos próprios. Mas não param por aí: eles também oferecem alternativas para unhas e cuidados corporais. E muita luta social e política. Tudo para valorizar a estética negra e resistir à exclusão social.
Ana Flávia Rezende explica que esses são locais que se autodeclaram salões de beleza voltados para tratar cabelo crespo e/ou cacheado de homens e mulheres negras, resgatando a valorização do cabelo natural, sua estética e traços fenótipos negados ao longo da história. “Eles constroem a identidade racial a partir da valorização do cabelo afro. Pelo viés racial, o negro sempre teve que adequar o seu cabelo ao padrão eurocêntrico de beleza, padronizado como liso e longo. Portanto, salões étnicos vão contra esse movimento, a partir do compromisso com o cabelo afro natural negado faz tanto tempo”, diz ela, lembrando também que é possível encontrar produtos químicos para alisamento dos fios nesses estabelecimentos.
A pesquisa menciona que a maior parte dos salões de beleza no Brasil ignoram e apagam os interesses e a beleza da pessoa negra. “Sobram tentativas de estereotipar o negro, que devia, até o aparecimento dos salões étnicos, se encaixar em um padrão que não é adequado para ele. O que seria isso, se não um tipo de violência? ”, questiona a professora Flávia. Na visão dela, salões de beleza tradicionais cometem violência ao negar tratamento adequado ao cabelo afro, sem entender a especificidade da estrutura dos fios cacheados e crespos.
Na última década, o mercado mudou para atender o público negro. Recente pesquisa divulgada pela multinacional L'Óreal aponta que 23 milhões das mulheres têm cabelos cacheados, crespos ou muito crespos no Brasil - o que equivale à população inteira da Austrália. Lojas que, no passado, apenas ofereciam produtos para alisamento de cabelos cacheados e crespos, agora repõem estoques variados de opções especializadas neles. São inúmeras linhas de cremes de hidratação, finalizadores, óleos vegetais, shampoos, condicionadores e muito mais. Alguns donos de salões étnicos também embarcaram na fabricação de produtos próprios, grande parte deles baseado em conhecimentos ancestrais repassados entre diferentes gerações na família.
Engana-se quem pensa que o surgimento dos salões étnicos começou na periferia das grandes cidades. Durante o desenvolvimento da pesquisa, eles se concentravam na região central e centro-sul de Belo Horizonte, cobravam preços apimentados pelos serviços e produtos oferecidos, além do fato de o cliente procurar por uma brecha entre agendas lotadas. Uma realidade bem diferente do que os empreendedores entrevistados escutaram na hora de tirar o negócio do papel. O compromisso com a causa racial gera lucro. “Você vai montar um salão para gente preta? Eles não têm dinheiro e não dará retorno’, foram comentários que os empreendedores negros tiveram de superar. Na prática, acontece o oposto”, conta Ana Flávia Rezende.
No aspecto social, os salões étnicos fomentam a troca de saberes populares e as últimas tecnologias para tratamento de cabelo, aprendizados e sentimento de pertencimento. É um espaço onde a população negra se articula politicamente e denuncia as opressões de raça, gênero, classe e sexualidade, entre outros. “Lá, o negro encontra seus iguais com pele e cabelo parecidos ao seu, com experiência de vida semelhantes à sua”, reforça Ana Flávia Rezende.
Contra a opressão colonial
A pesquisa apontou que os donos de salões étnicos e seus clientes enfrentam no cotidiano a lógica colonial estrutural da sociedade brasileira. Esse comportamento consolida esses negócios, que se tornam ponto de encontro e celeiro de resistência. A colonialidade explica a perpetuação das relações de poder que se estruturaram no Brasil. “O fim da escravidão não rompeu essa relação de poder que se mantém até hoje. Ainda no século XXI, vemos a enorme diferença de poder entre pessoas brancas e negras, e entre negros de pele mais clara e escura, em um país extremamente mestiço”, relembra Ana Flávia Rezende.
Na visão das pesquisadoras, a relação de poder muda de acordo com a tonalidade da pele: quanto mais escura, mais a pessoa sofre as consequências do racismo, da opressão, da desigualdade de poder e de acesso à educação, serviços públicos e oportunidades de trabalho. O problema decorre do processo de escravidão que se reflete até hoje nas relações sociais e econômicas. “Tanto é que o Brasil negou o racismo por muitos anos. É muito difícil lutar contra algo que é negado. A colonialidade coloca negros como subalternos e brancos como superiores”, frisa a mestre em Administração, que durante a própria dissertação assumiu o cabelo afro.
A questão racial é o centro do conceito para se pensar a colonialidade no mundo inteiro, ao estabelecer quem está inferior ou superior no estrato social, segundo a professora Flávia Mafra. “A definição de povos inferiores impede populações de ascenderem socialmente e terem vários direitos, inclusive de se vestirem e usarem o cabelo como querem. É neste contexto de negação da forte estrutura social do país que o empreendedor negro desenvolverá uma série de mecanismos subjetivos e objetivos, com a finalidade de estruturar os salões étnicos”, disse.