Por Vera Simone Schaefer Kalsing
Docente da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas, Educação e Letras (Faelch/UFLA)

Nas sociedades ditas modernas, temos observado um aumento estrondoso de pessoas adoecendo. É evidente que o contexto vivenciado pela pandemia da Covid-19 intensificou esse fenômeno. Porém, o que é importante destacar é o fato de que cada vez mais mulheres têm adoecido, por razões várias: sobrecarga de trabalho, jornada exaustiva e contínua, perda de emprego e renda, violência, cobranças delas próprias, que decorrem, no entanto, do que a sociedade espera e cobra delas. Indubitavelmente, essas questões precisam ser problematizadas tendo em vista o sistema patriarcal e seu entrelaçamento com o racismo e o sistema capitalista.

É necessário trazer uma nova perspectiva, um novo olhar sobre o adoecimento das mulheres, realizando, desse modo, uma autocrítica, buscando trazer mais elementos para a discussão. Quiçá, para empreender uma espécie de mea culpa, porque nosso olhar e nossas falas são situadas, para usar o termo da filósofa e bióloga estadounidense Donna Haraway. Possivelmente, não tenha como não ser. E o se dar conta disso faz parte do exercício de ser feminista.

No meu caso, trata-se de uma fala de uma mulher branca de classe média. Os problemas que proponho discutir são meus problemas, problemas de uma pessoa que teve acesso a um curso superior, que possui determinada renda, que consegue usufruir de certos serviços e bens de consumo. Os problemas de uma empregada doméstica negra são totalmente outros. Os problemas de uma mãe da periferia que precisa sustentar seus filhos e está desempregada são completamente outros. As preocupações de uma mulher camponesa, ou de uma mulher indígena, de uma mulher ribeirinha ou assentada de reforma agrária, quilombola, ou de uma mulher sertaneja são outros. Todavia, amiúde elas sequer podem falar a respeito, manifestar suas angústias. Mulheres chefes de família, mulheres operárias que moram nas grandes cidades, mulheres que sofrem violência, por parte do companheiro ou do filho. Como será a vida delas? Quais são suas demandas, suas angústias, seus anseios...

Ao assistir ao filme Bagdah Café1, depois de tê-lo visto há muito tempo, parei para refletir sobre o fato de as mulheres carregarem um fardo muito pesado e fiz a mim mesma a pergunta que havia feito em outro momento: “Por que aceitamos o que a sociedade nos impõe?” A cena do filme em que uma das protagonistas, a mulher negra, em uma discussão acalorada com o companheiro, reclama dizendo que ele não faz nada, me fez refletir. Segue o diálogo:

É só o que você faz, nada! E eu dou um duro danado (ela).

Se você parasse de ser tão mandona... (ele)

Alguém tem que cuidar das coisas! (ela)

Cuido do posto de gasolina. (ele)

Dois caminhões por dia, e eu cato as latas de óleo vazias. (ela)

Ninguém a obriga. (ele)

Essa fala me fez pensar se ela teria escolha, se ela poderia simplesmente não fazer. Ela pode se dar ao luxo de dizer “não”? Não cuidar das coisas?

Em outro momento, me lembrei do filme Entre irmãs2 e dos “destinos” ou, sinas, das duas, como mulheres num mundo que, na fala de uma das protagonistas, “não é bom para as mulheres”. Duas irmãs que tiveram destinos completamente distintos, porém, ambas foram vítimas de uma sociedade machista e patriarcal.

Desta feita, ressalto a imensa contribuição que o feminismo negro trouxe para o movimento e a reflexão feministas: há diferenças nas vivências e nas experiências das mulheres, posto que o feminismo, em sua origem, e especialmente o chamado Feminismo da segunda onda, era constituído por mulheres brancas de classe média e não problematizava o contexto e as opressões sofridas pelas mulheres negras e da periferia; porém, ao mesmo tempo se autoproclamava como o defensor das mulheres desde uma perspectiva universal. Podemos ainda acrescentar a essa reflexão as contribuições do feminismo comunitário e o feminismo decolonial, que nos convocam a pensar a opressão dos povos indígenas e, sobretudo, das mulheres indígenas e dos povos colonizados3.

Então, pergunto: as possibilidades de escolha são as mesmas para todas as mulheres? Será que todas possuem de fato escolha? Quando podem “se dar ao luxo” de ficar doentes, quando são diagnosticadas? Muitas vezes, não são. Quantas possuem plano de saúde? Quem cuida de quem “normalmente” cuida?

No contexto pandêmico, evidenciamos um intenso trabalho do cuidado e, naquele momento, sua cor e sexo foram escancarados. Enfermeiras, técnicas de Enfermagem, cuidadoras, mulheres de um modo geral, foram as que mais cuidaram de alguém durante a pandemia, tanto na execução do cuidado em saúde, na linha de frente do atendimento dos infectados pela Covid-19, como em casa: filhos, idosos, familiares em geral. A pandemia afetou as pessoas distintamente, sobretudo se levarmos em conta sexo, raça e classe. Mulheres foram as que mais perderam renda nesse período. Empregadas domésticas e diaristas foram afastadas, na maioria das vezes sem seus direitos garantidos em razão de ainda trabalharem sem carteira assinada no Brasil. Casos de violência contra a mulher sofreram aumento, em razão do fato de os companheiros terem de permanecer em casa.

Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as mulheres estão na linha da frente da batalha contra as pandemias, uma vez que representam quase 70% da força de trabalho dos cuidados de saúde, o que as expõe a um maior risco de infecção. Ao mesmo tempo, elas estão sub-representadas nos processos de liderança e de tomada de decisão no setor da saúde. [...] Entre os idosos, em nível mundial, há mais mulheres idosas vivendo sozinhas e com baixos rendimentos – o que as coloca em maior risco de insegurança econômica (undefined).

Em trabalho de pesquisa de pós-graduação realizado com mulheres responsáveis por crianças de uma escola rural, buscando analisar as vivências durante o período mais crítico da pandemia de Covid-19, minha orientanda de mestrado, ao questionar as mulheres a respeito de quem cuidava delas quando adoeciam, a grande maioria das entrevistadas respondeu: “eu mesma!” Ou seja, quem cuida só é cuidada por si mesma.

Em razão de vivermos em uma sociedade patriarcal, o conjunto das responsabilidades e cobranças (e autocobranças) que recaem sobre as mulheres é infinitamente superior em relação ao que se espera dos homens. E, no que diz respeito às mulheres negras, a situação é extremamente desigual se comparada à das mulheres brancas. O feminismo negro tem buscado problematizar o fato de as mulheres negras serem muitas vezes vistas como naturalmente fortes.

À vista disso, faz-se tão urgente e necessária essa discussão em termos das relações de classe e de raça. As mulheres com boas condições econômicas delegam a responsabilidade do cuidado de seus filhos ou de seus pais, ou sogros, a uma babá ou cuidadora, bem como terceirizam o trabalho doméstico, contratando empregadas domésticas. Em se tratando de Brasil, são mulheres ricas e brancas contratando, para não dizer explorando, mulheres pobres e, majoritariamente, negras.

É, o mundo não é bom para as mulheres, essencialmente, por conta do patriarcado a que todas nós, de alguma maneira, estamos sujeitas. Contudo, para algumas, as que possuem o privilégio da raça e da classe, ele se torna mais suportável, enquanto que, para a grande maioria, as que carregam o mundo nas suas costas, as que realizam o trabalho pesado, para que as mulheres ricas, quase sempre brancas, possam usufruir de uma vida mais tranquila, o fardo é, certamente, bem mais pesado. O que diremos então da mulher trabalhadora, das mulheres indígenas, racializadas, empobrecidas, excluídas de qualquer possibilidade de escolha?

 

Notas

1 - Out of Rosenheim (Original) Direção: Percy Adlon, Roteiro: Percy Adlon, Alemanha Ocidental, EUA, 1987. 95 minutos.

2 - Entre Irmãs (Original) Direção: Breno Silveira, Roteiro: Patrícia Andrade, Brasil, 2017. 2h 15min.

3 - Vide autoras como Julieta Paredes, María Lugones e Rita Segato.

 

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